(James Ensor, Totentanz)
Vejo o filme do Mundo, a cara do Mundo fluindo no rio que passa.
Vejo os soldados israelitas que se esforçam por impedir que os árabes passem à força num sítio qualquer. Vejo uma mulher que perde as estribeiras e o jovem israelita que quase perde a cabeça. Não vejo ódio nele, nem quando o velho marido da árabe lhe mostra o dedo e diz : “ Não batas na minha Mulher!” e o jovem israelita, gesticulando desta vez com respeito, bem como o árabe, se afastam num ínfimo instante de paz.
Ah, pudesse o velho árabe dizer à mulher “tu não podes comportar-te assim!”. Mas, depois, vejo uma velha árabe que protesta contra a câmara e posso imaginar os desgostos, as canseiras, as lágrimas que aquele corpo inchado e desolado, leva dentro. Vejo as mãos de uma enfermeira árabe que ergue a garrafa de sôro a um dos sobreviventes do ferry no Egipto e penso nas dores que tive um dia quando umas mãos assim foram a minha salvação. Espero que aquelas mãos não se tenham que erguer tantas vezes, num futuro próximo, que já não consigam mais.
Aí vêm outros ódios, outras bombas! E vejo aqueles israelitas a tentarem suster a multidão...
Tanta gente neste mundo que faz o melhor que pode, que faz tudo o que pode! E fá-lo de costas para Deus, com vergonha que Ele se aperceba que esperam um dia ser contemplados pelo Euromilhões da Sua paz.
Vejo os campos verdes da Normandia floridos de cruzes brancas onde tanta gente adormeceu para sempre. Parecem margaridas, numa eterna Primavera, flores que chamam a atenção, como as borboletas brancas, brincando no céu azul, anunciam a Primavera.
O Guarda Vítor viu um moço em chamas, um moço da Casa Pia que perseguia um pombo. Um teto desabou sobre uma exposição de pombos, na Polónia e dezenas de pessoas morreram geladas ouvindo já as vozes dos bombeiros. O Guarda Vítor salvou o rapaz sem pensar que podia morrer electrocutado (o Guarda Brás Lima morreu dois dias antes ao tentar salvar um rapaz na Linha da Amadora).Não são isto tudo sinais do sobrenatural? Não são estes os “homens a arder” que os romanos viam subir e descer as ruas de Roma, nos Idos de Março?
Oh, Deus de Israel, oh Allah Único de Jerusalém e de Xangri-La, Oh Meu Deus que és Um e és Dois, e és Três em Um e Um em três e as estrêlas todas que nunca ninguém contou. Meu Deus, para além das Palavras, dos campos desenhados na água e das linhas escritas na areia, meu Deus que tremes na nudez dos amantes que se vêem assim pela primeira vez e que tremes nos lábios daquele que enfrenta o pelotão de fuzilamento, que tremes na voz do comandante e nos dedos dos atiradores, que tremes no pobre que tem vergonha de entrar na Igreja.
Meu Deus do Riso, do Riso com que cruzamos os braços depois de tanto pôr, quando Tu dispões na brisa que passa. Meu Deus da Palavra indizível que é o antónimo de “massacre”.
Meu Deus do Depois, meu Deus do Depois, não deixes que risquem a Primavera que vem, com o jôrro do sangue. Em nome de Rosario, a sem-abrigo catalã, a qual, ainda há dez anos mulher de sociedade, foi um dia destes morta a pontapé por um grupo de jovens ricaços de Barcelona que nem brio tinham para rapar diariamente o cabelo, como skin-heads. Por memória de Rosario, de quem o antigo “companheiro” dizia que “eu sabia sempre que ela ia acabar mal”, este astrólogo de obras feitas que não se lembrou de cumprir o que devia.
Foi tão frio este Inverno para 57 milhões de pobres na Europa e para 2 milhões e meio de sem-abrigo. Não deixem que nos cansemos dos pobres, e deles nos queiramos desembaraçar, porque os teremos até ao fim dos tempos. Como parece música o pregão de um homem rico, ainda jovem, de Bruxelas, que vem à porta da Igreja, todos os Domingos, e pede por aqueles pobres que não são aceites naquele templo. Como são belas as suas mãos em torno do copo de plástico, e belo o seu nariz adunco de judeu sob a fronte clara de ariano, puxada para trás com um brilho antigo e passado! Meu Deus, onde estás Tu? Quando apareceste? Eu sei quando...Apareceste nos seis dias em que uma bateira cheia de imigrantes andou à deriva pelo Mediterrâneo até ser encontrada e apareceste nos segundos que o avião supersónico desapareceu do radar e voltou a reaparecer. Meus Deus, o único crime não é apenas ficar para trás. Um dia, um Samaritano deixou-se ficar para trás. A sua Pátria, a Samaria, desapareceu há muito. Ele, não.
Meu Deus do Riso, do sábio Bento que, na véspera de Natal, veio cá fora vestido de Pai-Natal e o seu olhar marôto dizia : “ O Pai Natal sou eu mas não dou nada a ninguém, senão talvez uns pontapés no rabo dos que não precisam de fazer desenhos para caricaturarem Deus-Pai por aí, todos os dias!”
Meu Deus do Riso e das boas gargalhadas, não deixes que destrocem a nossa Primavera!
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