8.9.07

Aforismos de Agosto, por Pedro Cem

1 - A sensação não tem Memória. Só tem outra sensação.

2- É óbvio que a desconfiança está cheia de Passado. O presente é diverso e o Passado ainda mais. Tantas diversidades podem ser simplificadas mas dão uma longa sensação de indigestão.

3 - A tentação ataca sempre uma segunda vez, como um extra depois de se fazer o que se deve porque, nesse momento, o que custa é aguentar a desolação, sem sinais de Deus.

4- Contar uma anedota a si próprio é algo que se pode aprender mesmo tendo nascido sem jeito para contar anedotas. E largar a rir sozinho pode significar que se foi visitado pela Verdade.

5- A solidão não é silenciosa. Está cheia de fantasmas. Por isso se deve aguentar uma posição social medíocre, porque a riqueza da solidão não é acessível a todos e é difícil de segurar.

6- As pessoas falam nos cafés, nas esplanadas, ao telemóvel. E todas as palavras coincidem à flor dos lábios. Na nossa busca de confirmação, nos arrastamos dilacerados uns para os outros.

7- Saí a tremer da água. Vi duas lésbicas num gesto terno e admirei-as do alto da minha masculinidade. Foi uma falsa tolerância porque dar um sexo ao Amor é afastá-lo ainda mais.

8- Programar, vontade de ferro…mas depois do embate a única sabedoria é perdoar tudo. À força de querer reduzir o Mundo à mente, cavalgámos uma quimera e caímos fora do Mundo.

9- Ao longo do caminho, nem Roldão, nem Mustafá têm tempo para perdoar. Só o perdão do tempo é que funciona. O tempo que nem Roldão, nem Mustafá têm.

10 - O aprofundamento do raciocínio é a inversão da realidade, mesmo o mais hiper-realista dos raciocínios.

11- Estratégia chamamos ao modo de dar um estilo a tudo o que fizemos com a fraqueza da vontade. Uns vêem caras nas mesmas nuvens onde eu vejo animais.

12 - Para prever o que vai acontecer basta não deixar que aconteça algo imprevisto. Se julgamos que não aconteceu nada, nunca acontecerá se não deixarmos. Crer é poder.

13 - “Vá, não penses nisso!” disse ela, com algo em mente. Deixei de pensar e a mente obscureceu-se ao levar com a luz sem a crosta protectora da ignorância. Era o que ela tinha em mente.

14 - Depois de muitas hesitações, lá decidiu. Para se fazer muitos disparates há que ser decidido. Por isso, os outros viram, mas ele não viu porque o saber lhe deu tempo.

15 - O pensamento é como uma imagem invertida. Fotografar uma imagem invertida e virá-la ao contrário pode falhar no cálculo. O pensamento não pode ser usado em bruto.

16 - Janeca pensou rápido. Julgava que o que via, de pensar tão rapidamente, era ela própria em eminência. Mas era apenas uma ressaca, em que ouvia a sua voz de cada vez que ponderava.

17 -A viagem é imaginação. Se o viajante morrer, expirará como se não se tivesse levantado da cama. O viajante tornou-se imaginário com a paisagem porque perdeu algo, ao partir.

18 - No homem que se põe a caminho, os dois primeiros passos são o contrário do nada, porque o segundo é uma potência do primeiro. Ao fim de mil passos, os pés doem. É o corpo que pensa.

19 - O mundo dos nossos órgãos não é inteiramente um mundo de trevas. Tenho a certeza, como no mundo dos peixes das águas do abismo, a nossa pele é ligeiramente translúcida.

20 - Porque se suicidou Lucrécio? Dizem que por Amor. Enquanto os átomos das lágrimas declinavam pelo seu rosto, secou-as ao sol para que se evaporassem para cima e o sal cegou-o.

21 - Quando a lua nascia Teilhard de Chardin cria assentar ideias. A luz da lua parece mostrar que tudo está ali na obscuridade. A luz do Sol não deixa ver tudo, a começar pelo próprio Sol.

22 - Como evitar a vaidade de ter Deus? Agradecer o desespero contínuo e cinzento e a loucura como um Seu afago. Jesus é o meu talismã e nem sei se Jesus existiu.

4 comments:

Anonymous said...

Meu caro:

Em http://www.lusavoz.blogspot.com/ achará coisas decerto interessantes para si.

Cf. especialmente comentários aos postais de 26 de Julho e de 3 de Setembro.

Anonymous said...

22. agradecer o desespero contínuo e cinzento?

: variante de noche oscura del alma? existencialismo cristão hard?

A mim parece-me puro masoquismo emocional e mental e espiritual.

Jesus talismã? Jesus superstião e Magia? E não sabe se existiu?

Por aqui não anda longe da Bruxa, do Quiromante, fornecedores de talismãs. Se não sabe se existiu, acreditar em Alguém que não se sabe se exisitu é um tiro no escuro, no melhor, ou uma fé cega e abstrusa em coisa nenhuma.

Não me fale em Mistério.

Querer acreditar em Quimeras? Quixotismo?

O meu amigo anda desesperado continuamente e cinzento? e Embaraçado com a vaidade de ter Deus?

Ter Deus? Conseguiu a propriedade de tal Ente e anda vaidoso por isso? Mas ao mesmo tempo desesperado e cinzento? Estranha formma de vaidade, como o do louco que no deserto mostra as chagas cøm vaidade, mas ao tempo chora e bate no peito onde está o covil do desespero, cheio de bichos cinzentos.


Desculpe lá ó Pedro Cem, mas que confusão dos diabos!

Deus não se"tem", porque não se pode possuir, não é um bem material ou imaterial.

Deus que fornecedor de afagos que desesperam, afagos que tornam cinza a mente?

Deixe lá essas coisadas para A Madre Coitadinha de Calcutá!

Paulo Alvelos

Anonymous said...

Caro leitor,

Agradeço-lhe o comentário até naquilo que tem de aspro, pois pode ser um sinal de despertar.

O aforismo é algo fora dum contexto enquanto o ditirambo é algo que vem directamente do "De dicto et de re" ( no fundo reificando a linguagem ou exercendo a função fática como diriam os modernos).

Neste contexto aceito que o meu aforismo, porque não se reifica, está fora da sequência mas dentro de um "estado de alma" que extravasa dos outros.

É verdade que Otto Weininger,esse pobre homossexual judeu (um dos dois únicos judeus que Hitler admirava)desapareceu, sgundo as suas próprias palavras, com um "tiro no nevoeiro".Eu não aponto a arma a Deus. Acho apenas que neste momento de lengalengas pragmáticas, de séries loucas, devo preferir um Deus obscuro, mesmo que o nevoeiro possa ser um outro neveoiro para a falta de tónus. Acredito, porém, que quando estou fraco, então é quando sou mais forte (ensinaram-mo S. Paulo e um barqueiro do Douro) e aceito que um desespero suave, contradição de termos, é uma oportunidade de ouro que Jesus nos dá, para retomar a Fé.Pode a Fé perder-se e a Esperança também mas a Caridade permanecerá até ao fim dos tempos.

Não "tenho" Deus como certamente alguns Poderosos de poderosas instituições porque sei que Deus não é uma deliberação intelectual do Ter, mas uma Vontade do Ser.

E penso haver Caridade em descer a este corrupio de bruxarias e superstições, evangélicas, tropicais, pragmatistas,neo-marxistas, dizendo que nem sei bem se Deus existe ( e existiu) como existem os "ter" deles ou que, na feira da loucura colectiva, eu tenho esta loucura pessoal de ter o "deus" do meu "povo" à volta do pescoço, como uma circuncisão da alma. Temos que começar por ser ecuménicos em casa, neste tempo de tantos que "têm" Deus. Os exageros dos meus irmãos evangélicos não são, a meu ver, heresia, mas também muito abandono da nossa parte.

S. Teresa de Calcutá passou isto tudo, não é preciso que uma capa de revista o diga. Só não lhe rezo ainda porque quando penso nela e contemplo a pantomina do Mundo, Marcel Marceau continua em palco na minha Mente, testemunho mudo contra a actualidade bem presente de tantas Calcutás.

P. Cem.

Anonymous said...

Desculpe lá mas essa Madre Calcutá além de um mito é uma fraude. Veja "The Missionary Position" do Christopher Hitchens.

John Godwins