Ao Caro Anónimo com quem tive a sorte de debater o Santo Cura de Ars
Fazia hoje anos. A partir de agora, ou talvez de antes, faço anos como toda a gente que tem a sorte de os continuar a fazer. De longe a longe, com os passos rápidos, da sombra.
Há muito que passei a comemorar a hora, porque os dias dão pouco tempo para comemorações quando já aprendemos que o dia de aniversário é um dia para Servir os outros, e, só no fim, esse Eu que é ainda um Outro.
Naquela hora em que nasci, 2 da tarde, na Ribeira do Porto com o Sol pando e as peixeiras a gritarem, encontrei-me hoje no canto de um refeitório, sózinho. Ao lado, um moço africano, com o rosto suave de pupilo de missionários, pousava a cabeça olhando a parede, com aquela gratidão de todos os que neste mundo têm algo para comer. Estava só também, no seu trajo divertidamente branco de auxiliar de cozinha, sempre no extremo da mesa onde os outros trabalhadores o costumam enquadrar, entre o paternalismo e a galhofa. Lembrei-me dos tempos que passei em colégios ou escolas pouco ricas, ao partilhar a sua expressão de quem afagava a própria mente, vidrada nos olhos, esse caleidoscópio maravilhoso que Deus nos deu a todos e que contemplamos assim com o nariz um pouco pendente, quando o corpo está calado, como se nos ocorresse qualquer memória indefinida e olhássemos para dentro. É o suave leão da vida que nos ronrona debaixo da árvore do meio-dia.
Tive sorte. Consegui ver uma Mulher muito bonita com quem me cruzo às vezes e que me poupou a culpa de devolver o olhar. Também vi as floritas da Primavera no relvado que pareciam todas agitar-se para mim, como se viajasse de combóio, sentado no refeitório.
Senti ums desolada vontade de quem precisa desesperadamente que alguém lhe pegue na mão. E, de repente, uma dessas môscas da fruta começou-me a rondar. Lembrei-me do fundador destas Duas Cidades, Santo Agostinho e do que ele dizia sobre a utilidade das môscas: despertar-nos. Este "môsco" ínfimo tocou-me várias vezes, com suavidade, como se não fosse ele, mas ambos nos encontrássemos em vôo. As ínfimas criaturas de um dia têm também esta utilidade: chamar-nos suavemente a atenção para que existem. De tal modo que, quando me levantei, as minhas mãos deslizavam pelo manto das recordações da vida, como se pela orla do manto vermelho de uma Nossa Senhora e descobri que algo existe efectivamente, de nós para fora, ronronando desde antes das nossa vidas. O toque deste veludo, por uma vez que seja, vale bem a nossa passagem.
Um momento de procissão é a Vida em que levamos o altar da Senhora, de quem flui sem fim, o manto de veludo, entre os nossos dêdos. E todos vamos atrás, levando o véu, um pouco por graça, um pouco por galhofa.
Compreendi então o pobre Nietzsche,em Turim, agarrando-se aos soluços, ao pescoço do cavalo que um carroceiro espancava. Com a sua triste figura, numa rotura de lágrimas e sangue, ele não queria dizer que era esse próprio cavalo, chamando a atenção sobre si, nem queria testemunhar uma boa-nova de amor universal a todas as criaturas. Ele, o da sorte danada, agarrava-se exausto a esse veludo que nos pulsa ao contacto da pele como quem se agarrava à vida antes dela lhe começar a deslizar pelos dedos.
Será o EU todos os fenómenos? Não sei. Nem suspeito. O Eu e todos os fenómenos são como esse véu duma Nossa Senhora da Parvónia onde as nossas mãos passam, brevemente. E, sem saber porquê, todos pegamos no véu e o levamos na procissão, de mão em mão, deslizando entre os dedos.
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2 comments:
Não tenho um prazer particular em andar a segurar véus, mesmo esvoaçantes e de delicado toque, de idolátricas imagens em procissão. Lá por isso antes segurar areia e fazer das mãos uma ampulheta, observando como o mar me leva o rosto e me devolve o nada, sempre se estuda o vazio que é a forma, e a forma que é o vazio sem ícone interposto ou boneca religiosa.
Nietzche ao abraçar-se a esse cavalo, em Turim, segundo os melhores biógrafos, declarou que o cavalo era Cristo. Excesso de cloral, happening avant la lettre? Declaração pertubardora mas comovente. Os cavalos tem o pescoço macio, neles também pior do que moscas da fruta que são doces porque gostam dele, passam-lhe varejeiras que picam mesmo e sugam vorazmente. Talvez ã noite nas suas volúpias penitencialistas o Santo Cura nos seus melhores pesadelos abrisse a caixa das varejeiras e se deixasse picar, deliciado, por elas, gemendo.
O EU é prático como logotipo dessa coisa evasiva: o ser. No máximo, é uma ficção bem conseguida e funcional. Embora não consiga representar o ser nem de longe. Mas é com ficções que nos aproximamos dos centros do puro mistério interior. Talvez o EU explodido numa constelação de heterónimos, como o fez Pessoa e Pirandello doutro modo, não assim tão divergente tenha algo mais a ver com o Parmenidiano traficante de identidades que somos todos enquanto não desenvolvermos raízes que se interliguem na pedra pura dalgum Monte Parnaso en eventual criculação.
Todos os fenómenos somos nós desde que não haja interponente entre a pura percepção e a coisa percepcionada alguma teoria estética, alguma finalidade ou objectivo mesmo de desaparecente militância. Ver o tudo sem qualidades, sem ideologia e mais delicado . sem interpretação era o que Nietzche estava "quase" a fazer e certamente o que nós "quase" faremos desde que haja a delicadeza rilkeana de voltar ao mundo todos os dias com os olhos rasos de novidade.
O Anónimo em Desfase Lunar Mais Outra Vez, e obrigado por se lembrar desta sombra do Hades, uma vaga a seguir a outra, nada mais do que a sombra de uma espada na noite escura
Anónimo,
Claro que nao me esqueci de si e a pergunta que deixou dizia muito respeito ao quadrante em que estávamos a falar. Esqueci-me foi de lhe agradecer os votos de Toth que bem vou precisar.problemas de saúde, uns a seguir aos outros, não sou eu que vou envelhecendo, sao as coisas que vão ficando pequeninas à minha volta, e não sei como segurar a morte que nos vai caíndo aos pedaços, nos meus braços cada vez mais grandes e desengonçados. Obrigado.
Confesso que hesito sobre o EU. Um ícone? Um botão? Uma ilusão organizada, uma ficção do interlúdio, um enorme calafrio quando a frase onde o "mim" aparece é uma sentença de morte ou um despedimento ( também uma alegria quando alguém nos faz notar que "ela gosta de mim!)? Estou de acordo, acho que desfazer-nos do Eu assim com um Budismo de café é precipitado. Chamar exemplos de total despojamento também podem ser demagogia que conduz a muito dislate. O Eu e sua Propriedade. Mas também digo que não lhe vejo propriedade nenhuma senão o Universo e ficamos na mesma. O Tu Divino de Gabriel Marcel e de Martin Buber parece-me anterior e mais decisivo que o EU. As imagens que dá da ampulheta são inspiradoras mas o que vi nas romarias da minha infância onde íamos a rir e ficávamos de repente sérios ( para sair a rir outra vez, mas guardando uma memória para sempre -- o meu amigo de infância Adolfo "Luxúria Canibal" que teve a sorte de ser criado só com o irmão e um piloto que já morreu, no Parque do Gerês, tem um belo poema rude sobre saudade/romaria) a imagem que escolhi respira em vez de só inspirar. Eu explico: O manto é o correr das coisas. O Budismo moderno japonês fala em shunyata ( vazio que foge) para mim mais exacto que o Kong chinês, estado hierárquico final antes do Nirvana a que Tang Jiaxuan promove o Frei Macaco na Viagem de ambos para o Ocidente ( este Frei macaco, símbolo, direi, quântico do inobjectivável, foi promovido só para não fazer mais asneira -- mas havia outros, Frei porco e Frei Areia). Porém ainda estou no Cristianismo: o veludo do manto de Amor de Nossa Senhora ( amor de Mãe) que não tem fim, desliza-nos pelos dedos e é veludo porque a sensação da passagem pela vida é substancial, as coisas existem, passámos por elas, sem saber levámo-las ao altar se tivermos essa sensação retumbante de jovialidade e comoção ( em vez de maya que não nega a Realidade mas nega a sua consistência, prefiro o o "Mundo é o cavalo sacrificial" dos Upanihads talvez porque corrsponde mais à acaravan a que pertenço). Ao contrário da sensação do haxixe, em que o pensamento corre sempre atrás do fluxo das coisas e não é ele que falha, mas as coisas que partem sempre, o véu trá-las à minha mão. Enfim, tudo alucinações, admito. Hoje olhei para um Cristo na cruz e disse "pobre yogui, morto assim na Galileia".
Mas o Deus das môscas não. Digo-lhe porquê. A caixa de Pandora foi aberta há muito, per supuesto que sì, porque não se desabre uma porta e as varejeiras de Baal também nos picam, muitas vezes nas entranhas e até se tornam em patologia, como as dores constantes de Joseph Vianney.
Percebi porque é que o môsco me tocava tão suavemente: um fole grande que respirava, era o ar em movimento que constitui o seu reino. O pêlo do cavalo que me limita e que me legitimava afastá-lo, era apenas um acidente.
Das sombras de onde me fala se diz que Orfeu comungou mas que delas também saíu. E Orígenes imaginou que um Amor tão grande, até das sombras tiraria os Caídos, penso que sobretudo com um grande riso, até quando cortou aquilo que nós sabemos e depois se arrependeu mas acabou por encolher os ombros achando que não tinha sido necessário mas também não era essencial.
Pedro Cem
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