Amanhã alguns de nós vão votar, se puderem. Uns dirão sim, outros dirão não, outros não dirão nada e ainda outros anularão o voto. Parece simples, não é?
Mas não é simples.
Se vencer o Sim, passará a haver Interrupção Voluntária da Gravidez, até aos três meses, em Portugal. Presume-se que o número de abortos em Portugal aumentará, mas os acidentes trágicos que têm acontecido até agora, é bem possível que diminuam também.
Além dos métodos contraceptivos, que muitas vezes falham, poder-se-á evitar a continuação de uma gravidez, em Portugal, sem ser incomodado pela Polícia ou os Tribunais, neutralizando uma "vida intra-uterina" com menos de três meses. Os planos do amor, ou simples relação sexual completa entre um ser humano do sexo masculino e outro do sexo feminino, com capacidade de procriarem, poderão passar a incluir a neutralização da vida intra-uterina, sem sanção jurídica, pelo menos em princípio.
O que é esta "vida intra-uterina"? É uma vida humana mas não autónoma? Se a mãe morrer, suponho que um feto até três meses não sobreviverá.
Poder-se-á considerar que, por lhe faltar esta autonomia e, cumulativamente, por não ter ainda nascido, esta vida não é ainda uma vida. É apenas uma forte possibilidade de vir a ser uma vida, pelo que a decisão de interromper a gravidez, de acordo com os mecanismos previstos na Lei, não se traduzirá num homicídio.
Podemos, portanto concluir agora, que se trata da interrupção de um fenómeno biológico chamado gravidez.
Contudo, nenhuma criança recém-nascida, quer dizer, viva, é autónoma. Abandonada, se não for tratada nem que seja por lôbos ou por uma computador sofisticado, programado por seres humanos, não sobreviverá. Uma vida autónoma, por comparação à do feto, morre, assim. Neste caso trata-se de morte. No outro, de interrupção da gravidez.
Podemos assim, dizer, que o chamado "Aborto" não é um homicídio.
Há razões para considerar o chamado "Aborto" um crime? Isso depende do que a maioria dos votantes, no dia 11 de Fevereiro disserem.
Como sucedeu com outros crimes, a vontade do eleitorado, pode decidir considerar que certos actos passam a ser crimes e decidir que outros deixam de ser crimes. O crime é, portanto, aquilo que as pessoas, numa determinada altura, consideram ser crime.
Na verdade, para o chamado "Aborto", há hoje já muitas pessoas, provavelmente a maioria dos que vão votar amanhã, que não considera que se trate de um crime, nem sequer de uma infracção. Acham até que a decisão de "abortar" deve ser apoiada com uma mecanismo complexo e caro de Saúde Pública. Acham, por outro lado, que uma grande número de abortos praticados até amanhã, são praticados em condições que o Estado deixou criar e que, ao fazê-lo ofendeu o direito de se abortar.
Se o Sim vencer amanhã, o Aborto até aos três meses será um direito.
Ora como se calcula que uma grande parte do eleitorado continuará a considerá-lo, até amanhã, um crime, é possível que, mesmo depois, continue dessa opinião. Portanto se um crime é aquilo que as pessoas consideram como tal num determinado momento, é possível que, depois de 11 de Fevereiro, muitos milhares de pessoas considerem o Aborto um crime e outros muitos milhares, um direito.
Mas um crime é algo que tem de ser declarado e punido pelos tribunais e pela Administração. Se o sim vencer, tal será proibido.
Mas um crime é algo que precisa também de ser censurado como tal. Há condutas que em determinadas épocas são consideradas como Crime pelos Tribunais e pela Polícia, mas não são consideradas como tal pelas pessoas. E vice-versa.
Portanto, haverá ainda muitos casos, em Portugal, em que a afirmação" o Aborto é um crime" continuará a ser verdadeira.
Num referendo de Sim-ou-Não é esta a realidade. O Aborto continuará a ser um Crime e um Direito como matar, por exemplo, em Guerra, continuará a ser para uns um Crime, para outros um Direito, ou até um Dever, que corresponde a esse direito.
E já que falamos em Guerra, esta diferença de opiniões continuará ainda válida quando as Guerras são declaraads e combatidas, dizendo-se " para acabar com a Guerra".
Enfim, tudo é relativo. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
O grande defeito deste referendo é que não é um referendo que muda as vontades. Muda apenas a conduta do aparelho de Estado.
Mas o Estado não é uma coisa abstracta. Ele apresenta-se conforme os seres humanos conseguem fazê-lo instrumento das suas vontades ou dos seus interesses.
Um referendo que só representa os interesses de parte da população apresenta apenas uma aspecto desse Estado.
O referendo vai assim dividir profundamente a população portuguesa. Se é certo que, durante o debate houve pessoas que mudaram ou transformaram as suas opiniões, no Referendo só poderão ter uma de duas opiniões. Ao consagrar isso, o Referendo determinará essa divisão, pondo fim a uma das finalidades directas dum debate de campanha.
O perigo da estigmtização das mulheres que abortaram, carente que ficará duma clarificação legal, poderá ainda ser maior, mais profundo, mais variado e mais difícil de evitar. Por outro lado, a sensação da injustiça dessa estigmatização, por parte das mulhers que abortarem, poderá ainda ser maior. Pode-se defender o direito ao aborto com medidas cuidadosas de segredo mas sabe-se que, numa população onde, até amanhã, grande parte do eleitorado considera o Aborto um crime, esse segredo será difícil de guardar, já que a censura, a reprovação que merece o Aborto, aos olhos de uns, só se exerce se se souber da prática de um crime. Como se presume que o Aborto aumentará, por ser mais seguro, por não ser reprimido pela administração e por passar a fazer parte do planeamento das consequências das relações sexuais, o segredo será difícil de manter. Tanto mais que, para muitos, se trata de um Direito e o direito deve, em muitos casos, ser proclamado para provar que existe porque foi exercido. Um direito sem exercício, não é realmente um direito.
As razões profundas que levam a fazer-se um Referendo de Sim-ou-não são obscuras e duvido que, quem as propôs, fosse inteiramente consciente dessas razões.
Trata-se, segundo alguns dos seus mais altos responsáveis, de melhorar Portugal, eliminando uma prática perigosa para a Saúde, a do aborto clandestino. Acreditamos que a legalização do aborto até aos três meses diminuirá significativamente este perigo.
Mas um Referendo que divide necessariamente a vontade de todos não diminuirá os maus sentimentos de umas pessoas pelas outras.
Assim como certo tipos de sentimentos e atitudes levam as pessoas a engravidarem e, às vezes, a terem de recorrer ao Aborto, também outro tipo de sentimentos levam as pessoas a dificultarem a vida uns aos outros, a odiarem-se e a romperem uma vida social menos agressiva. O facto de isto acontecer tende a tornar-se muito mais intenso, se, de um dia para o outro, se passa a deixar de considerar algo como um crime e se passa a considerá-lo um direito.
Poder-se-ia ter resolvido isto a nível da Assembleia da República, onde sentam os representantes da vontade popular? Certamente que não porque, aí desde logo, esta má-vontade de uns contra os outros aconteceria e se começaria a aprofundar, disseminando-se para fora.
A campanha do referendo permitiu muitas pessoas intervirem, mudarem de opinião e aproximarem as opiniões.
Mas o resultado do referendo, como está previsto, não ajudará neste sentido, antes porá fim ao debate, pelo menos do tipo que tinha suscitado, ou seja um debtae com uma finalidade eleitoral.
A decisão, amanhã, portanto, será, ou um Crime ( pelo menos um delito) ou um direito.
Esta ideia de mudar uma vida de uma população para melhor, aprofundando as divisões, corresponde a uma tradição política que acredita ser pela neutralização da opinião de uma grande parte do eleitorado, que se põe em prática uma boa solução.
Por outras palavras: a solução é boa independentemente da opinião das pessoas a quem se aplica. Neste caso aplica-se não só às Mulheres que vão abortar mas a todas as pessoas que intervieram no aparecimento de uma gravidez, a das que procedem à sua interrupção e das que contribuem para os mecanismos colectivos da sua efectivação.
Esta ideia de que uma solução é melhor do que as pessoas pensam dela é aquilo que o Referendo, julgando ser uma consulta às pessoas, se limita a verificar.
O Aborto sendo, sobretudo, uma questão das mulheres, pode vir a ser decidido, por exemplo, maioritariamente por Homens. O aborto, sendo uma questão das mulheres que se encontram em idade de conceberem, pode vir a ter consequências para futuras mulheres que ainda não estão nessa idade, ou em mulheres que já passaram essa idade.
O Aborto, sendo sobretudo uma questão de uma vida humana que pode decidir, pode vir a ter graves consequências sobre uma vida, possivelmente humana porque se distingue da vida da mãe, a qual não pode decidir, a não ser prosseguindo uma gestação que não constitui obstáculo para o interruptor voluntário legal. Ora, se se tratar de uma vida humana que se distingue da da mãe, ela não terá direito de espécie nenhuma, porque qualquer que seja o direito que lhe podemos atribuir, não o poderá exercer, uma vez que não pode, possivelmente ser considerada viva.
Que vida é esta "vida intra-uterina" passível de ser extinta por via do chamado "aborto"?
Só podemos chegar à conclusão das duas, uma: se é uma vida humana, é uma vida. Se não é humana, não pode ser uma vida, porque pode ser eliminada, em qualquer altura até aos três meses, sem que a vitória do sim no Referendo ponha em causa o princípio de protecção da vida animal, vegetal ou humana, da Constituição. Esta é a consequência forçosa da livre contratação do "Aborto" até aos três meses.
Portanto, a "vida intra-uterina" é apenas a vida do útero, é apenas a vida da Mulher grávida.
Reconhecemos que o conceito de Vida é duvidoso devido ao prolongamento artificial que novas técnicas da Medicina podem fazer de certas funções do corpo humano. Ou até de certas síntese feitas em Laboratório e da ideia que a Ciência tem de organismo vivo.
Reconhecemos que o facto da Guerra, da Doença, das catástrofes naturais, podem levar-nos a tomar num determinado momento, como Vida, o que já cessou de o ser. A vida é também uma realidade estatística.
Contudo, a ideia de que uma solução boa para a vida social (nomeadamente aprovando e aplicando uma medida que racionalmente conduz a menos perdas de vidas humanas entre os que decidem abortar) pode decretar que uma forma de vida é apenas uma coisa e que essa coisa pode ser retirada do útero da mulher grávida, em qualquer altura, não sei se é mesmo boa.
Mais, quando a medida se faz, neutralizando completamente uma parte importante dum eleitorado, é capaz de ser um caso em que a boa solução não olha a meios para atingir os fins. Com efeito, os meios tratam-se de realidades físicas (os fetos) que são tidos por muita gente e foram tidos por muita gente durante muitos séculos, como formas de vida.
Pode-se dizer que a intenção de quem lançou o referendo é a de neutralizar, se não uma forma de vida, pelo menos, o conceito de vida que grande parte da população tem, sendo certo que algo só é vivo, se também for considerado como tal.
Ora o Referendo pode vir a cancelar um conceito de vida, quando a vida, logicamente, não pode ser inventada ou abolida pela vontade referendada. Não foi essa a pergunta do referendo, não é isso que é perguntado aos eleitores.
Tudo se torna agora mais simples: se se pode acabar, de um momento para o outro, uma vida até três meses de existência, então é porque essa vida pode, caso o SIM ganhe amanhã, no momento em que está a ser nomeada por alguém, já não existir.
A lógica aqui é imperativa: algo que é e não é uma vida, ao mesmo tempo, não é uma vida.
Dizem, porém, que esta perspectiva já corresponde à realidade.
Ora se já é uma realidade, que o facto novo dentro do útero da mulher grávida não é uma vida, então outros factos como a de um condutor numa auto-estrada, um doente terminal, uma pessoa fragilizada, um soldado em teatro de guerra, um recém-nascido, uma pessoa com comprovadas tendências suicidas, uma pessoa desaparecida, uma pessoa com um código genético que indica propensão para doenças mortais, só é uma vida, até o provar.
E, da mesma maneira que a mulher decidida a abortar, tem de provar que está grávida, e tem de provar que é essa a sua vontade ( no caso do sim ganhar) todas as categorias de pessoas acima indicadas têm o dever de provar que estão vivas ou que querem viver, sob pena de não lhes serem reconhecidos outros direitos, como ao trabalho, ao respeito, à pensão, aos cuidados médicos, etc.
Ora como sabemos que muitas vezes, muitas pessoas se encontram nessas situações, um Estado que faz este tipo de Referendo, reserva-se o direito de fazer referendos, com perguntas semelhantes, das quais um eventual Sim pode conduzir ao extermínio de categorias inteiras de pessoas. Como aconteceu num passado não distante e como acontece nos dias de hoje.
Por isso, "Não" é a única resposta possível das alternativas expressas a uma pergunta que refere apenas a consequência (a pena, ou a despenalização) sem referir a causa ( o crime). À pergunta falta um código comum. Podem haver muitas pessoas que concordam com a não punibilidade da mulher mas que, mesmo assim, acham que o Aborto continua a ser um crime, se bem que desculpável.
Além do mais, o Não só pode ser interpretado como um Não ao Referendo. E todos os Nãos têm de ser contados como abstenções, eventualmente até para um desafio à constitucionalidade do seu resultado.
Porquê ? Porque se a resposta sim transforma um crime num acto normal de cidadania, então o Não considera que o facto susceptível de aborto dentro do útero da mãe é uma vida humana e está protegido pela sanção penal a uma crime.
O que o Não diz é que "não quer despenalizar a mulher que interrompe voluntariamente a gravidez num establecimento autorizado". A Lei ficaria, portanto, no caso do Não ganhar -- e o Não é expresso antes de se saber o resultado -- na mesma. A mesma lei que sanciona um crime contra uma vida intra-uterina. E é assim, que hoje, dia 10, está expresso.
Ora se esta "vida intra-uterina" é uma vida, portanto diferente da da mãe, não é uma coisa que pode existir ou não existir dependendo do horário da intervenção da clínica e da vontade da mulher grávida. É uma vida que existe e tem direitos, a partir do momento em que foi declarada.
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