Outro dia, um fantasma veio-me visitar no prédio antigo onde vivo. Não eras tu, irmã Morte. Era uma mulher antiga que vinha cuidar de mim e fiquei contente ao saber que a Feminilidade com que apareces seja maior que tu, irmã Morte, e te sobreviva para voltar do Além, enganando-te assim, para puxar os lençóis sobre o meu peito gelado.
Vejo que visitaste o meu irmão Sharon e lembrei-me como tu devias presidir a todas as reuniões, passares de vez em quando o teu véu em frente aos rostos distraídos pelas animações das telas coloridas.
Duramos tão pouco, o nosso tempo não serve para comandarmos o carro de Apolo. Ao fundo estás tu, no teu vestido longo e antigo, como uma noiva prepotente. Não, não percorrerei a álea dos ciprestes gigantes com que o jovem Adolf Hitler quis tranquilizar para sempre a sua alma, na sombra fresca.
Devíamos pôr-te sempre à cabeceira das mesas de negociações, reservar-te um lugar. Sabes que não há gozo, nem justiça, nem Liberdade, nem paixão a que tu subitamente não dês a mão, como uma noiva arrependida a um motorista chegado num carro por trás da Igreja, que ninguém conhece, e que, por isso, embarga todas as gargantas muito antes de apareceres ao fundo. Figura imóvel entre dançarinos, mordomo inesperado que indica a porta na ondulação das suas vestes, amante desprezada que aguarda o seu quinhão...
Sharon disse um dia, provocado por um jornalista, que preferia ser um SS vivo a um judeu morto. É engraçado como todos falam da morte de um ponto onde ela não toca, como um gato que faz dançar a sua presa ferida num círculo letal, parando o tempo, antes de o comer e o deixar apodrecer por dentro, desde a cauda. Os livros relatam as mortes, fazem estatísticas mas poucos dão o testamento pormenorizado de cada afogamento nos seus braços. Alguns livros militares referem a quase universal invocação da mãe, outros, das últimas cartas muitas vezes ocupadas com o final tricotar duma esperança judiciária que a História ouve sem proferir uma palavra, não vá o castigo que a espera, por tão pomposa e sentenciosa, ser ainda pior. Como comportar-se perante ti, irmã Morte? Como respeitar a etiqueta, tu que reverberas para todas as hortas, desde os ermos, como uma torrente ciumenta, que acenas como um melro solitário ao termo de cada jardim onde uma estátua antiga, voltada de costas, faz tropeçar o incauto para fora do Éden. Assim há a morte dum filho, a morte do Amor, a “pequena morte”, a morte do artista, a morte d’homem, a morte do dia. Já vens embargada na garganta das crianças, desde sempre.
E tudo isto, nada disto, devia valer, nem Gaza, nem Jerusalém, nem a Terra Prometida, nem Sião, nem a Aliança, nem a Palestina, nem a Judeia, nem a Samaria, nem a última carta de Mordechai Anielewicz, essa vergasta na mão de Cristo, soçobrando entre as ruínas do Ghetto. Nem mesmo o teu honrado esforço, Sharon, por encontrares uma solução sem que as hienas se fiquem a rir de ti e dos teus antepassados.
Não sei que bonzo dourado me surpreenderá com o seu silêncio, não sei que brisa de Elias me fará sair da caverna do medo, agora que o fim te saudou sem etiqueta (a ti, que, como nós todos, não sabemos o que vestir para a receber). Só sei, Irmã Morte, doce pantera negra que também te ajoelhaste aos pés de S. Francisco, que devias ter aparecido ao lado das manifestações de júbilo dos palestinianos ( e não dentro delas), aos entardeceres das praias de Tel-Aviv ( e não no coração dos soldados de licença). Agora que tens a tua mão no jôrro de sangue de Sharon, irmã Morte, que não a fechas, não a baixas, nem a retiras...
Será que nos lembras a todos que não há tempo a perder porque o Tempo se perdeu há muito?
Será que, Ahmedinejad, não vês que este não foi um castigo de Deus mas o Silêncio todo que fica quando tudo cessa, até o silêncio, depois dos nossos gritos ao Céu? Porque só vês o imã Hussein com o filhinho nas mãos estendendo-o aos assassinos de Kerbala e não o vês caíndo sob os golpes, agarrando-o ternamente no regaço?
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