24.10.09

XXXVII (Re)leituras - Um «Fausto» de Saramago, por André Bandeira

Li «Cem Anos de solidão». Era um romance maravilhoso a que chamaram de «realismo fantástico». Tendo sido escrito por um homem muito culto e artista, fiquei durante uns tempos a pensar que passara a haver uma forma de falarmos das coisas a direito, sem nos dotarmos, antes, de uma linguagem certificada. Saramago, se calhar, pensou o mesmo. E pensou de tal maneira que achou que podia tratar também a Bíblia como «realismo fantástico». A linguagem antiquíssima da Bíblia passou a ser explícita como um comunicado político ou um anúncio das «Páginas Amarelas» e o que era símbolo passou de realidade fantástica, para uma noite sem dormir. Um pouco como se o que foi escrito nos hieroglifos egípcios fosse título de jornal e a raiva militante nos levasse a crer que, em vez do faraó, estavam a falar do Presidente, ou de mim próprio.Com o tempo, com o escavamento de civilizações mais antigas e o aprofundamento, quer da tecnologia, quer da linguagem dos animais, poderemos talvez tratar como «realismo fantástico», qualquer texto ou comportamento.Alguns textos de Física e Astronomia têm já esse carácter. Mas, aqui, faltam-me as palavras (parece que «neve» é dita de muitos modos por um «esquimó»). Vi também a amostra de debate entre o Padre especialista da Bíblia, Carreira das Neves, e Saramago, para perceber que o Padre, honesto e cortês, não se soube defender. Nesse mesmo dia conheci um missionário católico que trabalha há trinta e três anos numa região longínqua onde muitas pessoas estão mais ou menos condenadas a prazo por uma doença terrível, inclusive ele. Este missionário citou várias vezes a Bíblia e não tinha e-mail.Honestamente, não vou ter tempo para ler «Caim» e Saramago está para a Internet como Júlio Dantas para Almada Negreiros. Mesmo desculpando-se por uma linguagem rude que não o levou a retirar o livros das bancas e corrigi-los,Saramago lembra um Fausto fugindo duma sombra que lhe mostra um pacto assinado a sangue. E, aqui,o vulto cultural de Saramago entra no seu próprio realismo fantástico. Nesse mesmo dia percebi também que o missionário que conheci continuou a escrever a Bíblia, durante trinta e três anos, numa escrita que Saramago pode só vir a entender tarde demais.A escrita era realista.Se havia algo fantástico, era o Silêncio que se impôs a seguir.

22.10.09

XXXVI (Re)leituras - A Bíblia, de autor anónimo, por André Bandeira

Veio a primeira neve na Serra da Estrêla, em Portugal.A neve, que é muito branca e pura. E que cai sempre como uma página se enche de letras, ou uma folha branca se enche de traços, os quais -- diz-se -- tentam imitar a Natureza. E volta a escrever-se, cada Inverno.Um dia li a Bíblia numa semana e pouco percebi. Demorei anos, mais tarde, tive de aprender línguas antigas para voltar a ler algumas partes dela e percebê-las. Na verdade, penso tê-las percebido mas há mil maneiras de dizer a mesma coisa como os flocos de neve caiem sobre o chão, sempre de modo diferente e dão sempre a mesma brancura,fonte de luz inesperada quando os nossos olhos pesavam. Gostava de ser Hamish e ler a Bíblia de tal modo que quando entrassem na minha aldeia onde me refugiei, num instante de piedade da Natureza cruel, e começassem a estuprar as minhas crianças inocentes, eu fosse ainda capaz de-- uma vez passada a momentânea tortura -- de recolher esmola para a família das vítimas e para a viúva do assassino. E dizer isso, como a neve cai, santa e pura. Sim, agradeço a Bíblia em que me exercitei a ler, quando já tinha aprendido a ler, nas estrêlas, nos jornais, nos computadores, nos Tratados e nas linhas da mão. Agradeço o Deus vingativo, cruel e de mau carácter que o Homem fez à sua imagem só para que o Homem se pudesse ver como era e os traços negros da imagem se fossem acumulando, subissem no ar e condensassem a neve, que finalmente cai branca e pura.Nem Jesus, de quem alguém disse ter falido, muito antes dos céus se abrirem,pôde deixar de dizer, antes de entrar no enrêdo da Bíblia «Pai, se puderes afastar de mim este cálice...», para concluir, quase sem forças, «Mas faça-se a Tua vontade». Posso imaginar homens antigos, de muitos tempos, urgidos pela Morte que sempre avança nos subúrbios da cidade, tentando arranjar um sentido definido nas palavras que pronunciavam. Sim, é como medir o Universo pelo avanço que o atleta Aquiles dá à tartaruga, ou recordar uma bela noite estrelada de Verão pelos sons de umas anedotas que alguém ainda tenta contar ao fim de uma festa. E, no meio dessa escuridão imensa que começa nos subúrbios da cidade, onde os soldados ainda combatem -- que é uma escuridão apenas porque me pesam as pálpebras ao pensá-la -- a neve volta a cair, branca e pura, como as notas de uma música, os preparativos do pescador, os balidos de uma ovelha nascida de madrugada. E o chão se torna branco, mais uma vez, mesmo se me vem o arrepio da súbita lembrança de alguém que sofre ou está a morrer. Quem diria -- pergunto-me -- que as partículas escuras voando em redemoínho,e subindo no ar, provocariam esta brancura? Bom dia, irmã neve, que nunca te esqueces.

20.10.09

XXXV- (Re)leituras - Um Imenso Portugal, de Evaldo Cabral de Mello, por André Bandeira

Eis um livro, composto de artigos de Imprensa, que apontam para tantos horizontes na História, que até parece grosseiro fazer uma recensão. Mesmo assim, o título, voluntariamente tirado a uma canção de Chico Buarque, obriga um ouvido duro a cantarolá-la por distracção a cada página. Cabral de Mello defende que o destino do Nordeste brasileiro, antes e depois de 1640, permitiu um Portugal independente e, este último, por existir, permitiu a independência do Brasil.Depois, diz que o nacionalismo brasileiro apareceu por causa da independência e não ao contrário. Devo dizer que estas estradas profundas num Passado não muito longínquo (afinal, Hobbes e o Estado leviatânico são bem actuais)emergem de repente para dar uma resposta a termos e palavras que se nos impõem como enigmas. Não digo que o livro ande atrás de slogans criados por publicitários, apresentados sob a forma de charadas que nos vemos a resolver, ao guiar o automóvel ou a preparar o pequeno-almoço. Mas noto que certos paradoxos são como cortar a madeira dum lado e do outro da ponta do lápis, até fazê-lo tão aguçado que já não é mais um lápis, tornou-se um espêto.Como o livro, parecendo de História, se transforma num livro de política pura, não é difícil de imaginar uma História de Sherlock Holmes em que o Historiador aparece assassinado sobre a secretária com um lápis enfiado no coração. Como descobrir o culpado? Eliminado os suspeitos. Se Portugal fosse imenso, não seria Portugal, como não é português o «mar sem fim»,pois nem o mar, nem a terra antiga foram alguma vez fechados e os gregos e os romanos arruinaram-se ao querer fechá-los. O nacionalismo brasileiro não é português. A nova História fá-la-ão as pessoas com as suas estórias, mesmo aquelas que vieram de muito longe, tão longe quanto o calendário longo dos Maias e que pareciam aos marinheiros velozes, ilhas paradas na torrente, ou escravos de olhos apáticos. O autor é capaz de concordar comigo quando diz que falta fazer a História do Homem Negro no Brasil.Como viu o Escravo, o Grande Êxodo para Ocidente? Talvez um dia se encontrem os períodos duma «História» espiritual e possamos, enfim, passar a floresta dos vodus e dos feitiços, fazendo pousar finalmente as duas mãos do Cristo redentor, uma sobre a outra.

14.10.09

XXXIV - (Re)leituras - 1491- New Revelations of the Americas Before Columbus, de Charles C. Mann, por André Bandeira

Depois de ler este livro de 2005, concluo que, se tivesse que dar um primeiro nome ao Género Humano, lhe chamaria «desajeitado». Como eu. Este livro, de um jornalista de Ciência norte-americano, corresponde à moda,aflitiva, entre vários americanos, de se considerarem «índios», contra o resto do Mundo, depois de terem, por distracção ou deliberadamente, massacrado os índios reais.Depois de quase provar que, antes da Civilização mediterrânica, o Novo Mundo era muito mais povoado e histórico, quer dizer, mais velho, o livro faz-se de jovem, dando a entender que muitos dos mistérios a resolver pela humanidade residem nesta ciência nova do novo Mundo. Linguística, Ecologia, Matemática, vieram ao Mundo, no Novo. E o Novo Mundo, apesar de patentear as asneiras de todo o resto da Humanidade, cometeu-as ao mesmo tempo, mas a solo e, por isso, sobreviver-lhes-á. Por exemplo, o moderno conceito de Liberdade foi copiado dos iroqueses do Canadá e levanta a hipótese de que o elo perdido entre as formas mais arcaicas de cultura e as mais modernas, ficou a pairar no corredor americano, da Antártida ao Árctico, como o arco-íris.Enfim, é como redescobrir a Índia por Ocidente -- em vez de a «achar»,como diziam sempre os marinheiros portugueses.No meio de querelas científicas e políticas, o autor faz um bom jornalismo vespertino, em que o dia começa em 1491.Mas ficamos insatisfeitos. Se é verdade que a notícia da História ter acabado, foi exagerada e há muitos mais mundos para além da Democracia ( uma forma de aristocracia das assembleias,baptizada na Grécia), os quais nasceram há milénios e se estão a desenvolver em mundos coexistentes, também é certo que a História é tanta quantas as vidas humanas que a inventam. E, nisto, continuamos num poço a contar pedrinhas,sem rezar.
O livro faz ainda uma manchette: a Amazónia é uma invenção dos índios. Só se formos índios -- o autor hesita -- poderemos salvar as Amazónias do Mundo. Mas não há «índios», nem na Índia e «prêtos»,há alguns olhos, como «brancos», alguns flocos de neve e amarelos alguns girassóis.Há extraterrestres a rodar no meu gira-discos.

12.10.09

XXXIII - (Re)leituras - A Estrada para Fornovo, de Fernando Lourenço Fernandes, por André Bandeira

Poucos sabem que o Brasil combateu ao lado dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. E que teve cerca de 1900 baixas mortais, entre marinheiros, soldados e civis.O autor, que dedica o livro também ao estudo de «outras guerras», dentro da Segunda Guerra Mundial, relata vários episódios que testemunham a completa ignorância do facto entre os europeus, com a excepção de Portugal, onde o facto é conhecido, também por razões afectivas. O livro relata com bastante objectividade o que foi a Guerra Civil italiana,de 1943 a 1945 (ou até mais tarde) que se desenrolou entre o Norte e o Sul de Itália, afrontando Governos italianos de sinal contrário, que tanto o comando alemão, como o comando aliado, desprezavam. E descreve ainda mais objectivamente a profunda angústia e luta contra o absurdo com que os italianos se viram, de um mês para o outro, transformados em joguetes da geo-política internacional. Ao cabo de se ler o estudo, fica-se com a ideia que dificilmente um povo tratado assim, poderia alguma vez mais falar na cena internacional de coração aberto. No meio disto tudo, os brasileiros, mal-equipados, foram alvo duma possante contra-ofensiva alemã que acabou por dizimar, ao lado, uma Brigada ainda mais mal-preparada, apesar de todas as certificações, a 92ª do Exército norte-americano, por sinal uma brigada de soldados negros, com o corpo de oficiais, branco. Mesmo assim, a Força Expedicionária Brasileira sustentou eficazmente o combate na zona de Modena e Reggio Emilia, a qual viria a ser considerada o «Triângulo Vermelho» da Itália do post-guerra mas que, curiosamente, gerou naquela altura, mesmo sob controlo aliado, um número inaudito de voluntários nas tropas fascistas. No meio desta confusão de dor e vergonha, os soldados brasileiros ficaram conhecidos pelo modo humano como tratavam os prisioneiros.
Lembro-me de um alto funcionário cingalês defender, um dia, a necessidade de militares do Sri Lanka continuarem a morrer em missões internacionais de Paz, por África e recordo-me de todas as tropas do Ultramar que morreram na Segunda Guerra Mundial. Se todas as guerras na Europa têm algo de Guerra civil, não vejo que haja nenhuma vitória em ver o Resto do Mundo, mais tarde ou mais cedo a intervir neste género de vespeiro. Os mouros da «França Livre» ou os argelinos eram duríssimos na guerra de montanha. E a sua crueldade ninguém a esqueceu. As populações italianas,então martirizadas e confusas, em torno de Pistóia, não esquecem ainda hoje a Humanidade das tropas brasileiras, numa Guerra onde o Homem se olhou ao espelho e viu um monstro.Por isso não faltam razões de orgulho para as Forças Armadas Brasileiras.

6.10.09

XXXII - (Re)leituras - Povo que lavas no rio, de Amália Rodrigues, por André Bandeira

Amália morreu a 6 de Outubro. Depois dos seus bens terem sido descongelados, sabe-se que apenas deixou cerca de 500.000 Euros, os quais terão de ser bem geridos para realizar os sonhos da Fundação com o nome da cantora. Amália não era assim tão rica, não era assim tão símbolo do Estado Novo, não era assim tão esperta, não era assim tão Mulherão, não era assim tão estrangeirada, etc. Mas algo que ela era «muito assim», era uma grande cantora, de um género de música que se canta com poucos instrumentos musicais, sobretudo numa cidade que tem muitas raízes mediterrânicas mas que é a capital de um país atlântico. Se dissessem a Amália que Portugal ia acabar, que qualquer das suas bandeiras desapareceria para se unir com uma bandeira representando um outro espaço, do qual Portugal era apenas uma parte, que Portugal abdicaria de ter um Hino próprio e até da sua Língua, que haveria ela de pensar? Penso que ela, que começara como pequena vendedeira num cais onde desembarcava gente de todo o Mundo, já tinha exprimido o que sentiria, nas suas canções:«Povo que lavas no rio/Que talhas com o teu machado/As tábuas do meu caixão.Pode haver quem te defenda/Quem compre teu chão sagrado/Mas a tua vida não». Não faltará quem defenda o povo, quem compre o seu chão antigo porque, em Economia, os bens mudam de mãos. Mas a vida desse Povo não se compra, nem pode ser defendida por alguém de fora. Uma vida que se defende a si mesma, com um coração independente, «foi por vontade de Deus», que teve de viver assim, «sempre, nesta ansiedade». E é esse Povo que só se pode defender a si próprio, aquele que talha o caixão de quem toma consciência dele. Como se, por trás de todas as bandeiras de Portugal, adejasse o recorte dum buraco na terra, ou um pedregulho caindo no Mar, uma bandeira negra, um xaile e uma capa esfarrapadas. «Barco Negro/Dançava na Luz», diz outro Fado de Amália. Posso imaginar um cavaleiro do Norte que chega a uma cidade, onde uma mulher imóvel, vestida de negro, canta qualquer coisa, rodeada de músicos solenes e contidos, como se proclamasse um ultraje. Mesmo sem compreender, esse cavaleiro deter-se-á a ouvi-la, como se houvesse realmente um ultraje qualquer, irónico e firme, que é reparado no pregão. Penso que Amália, que tinha gestos espontâneos de dar dinheiro sem contar, a pessoas totalmente desamparadas, certamente que sairia do cortejo para dar tudo a esse Povo que arqueja por continuar a existir, como um Rei abraçado ao mastro de todas as suas bandeiras esfarrapadas.

4.10.09

XXXI - (Re)leituras: How the Irish Saved Civilization, de Thomas Cahill, por André Bandeira

Esta obra de 1996, com o subtítulo do papel heróico dos irlandeses desde a Idade Média até aos nossos dias, defende a tese curiosa de que não haveria Renascimento se o Monges irlandeses não tivessem continuado a cultivar a civilização greco-romana ao longo de todas as invasões bárbaras. Embora passassem, a partir de certa altura, a ser pilhados e mortos pelos vikings e pelos anglo-saxões, os irlandeses nunca foram invadidos pelos bárbaros, tendo finalmente repelido a invasão normanda,na batalha de Clontaft. Diz-se que, em tempos de total isolamento, subiram a parada, e passaram mesmo a falar uma forma de latim ainda mais exigente e refinada, continuando assim aquilo que no Império Romano do Oriente, de Justiniano, ia asfixiando num território cada vez mais estreito. Nomes como João Escoto Eriúgena conseguiram passar intacta a tradição platónica que reemergiu também no Franciscanismo espiritual. Quer dizer:na Irlanda, a Idade Média não se interpôs entre a Antiguidade e a Modernidade. O livro dá também um papel de relevo importante ao congregacionismo irlandês nos EUA dos Sécs. XIX e XX, entre os colonos calvinistas e todo o resto.Quando Nova York se fazia nas ruas, à navalhada e ao cacete, o «Paddy» irlandês, conhecendo toda a gente no bairro e manejando bem um cajado curto, era um elemento mais gregário que a Polícia e menos desagregador que o mafioso.
Não sei se a Tese é ou não uma vaidade de um filho de imigrantes irlandeses nos EUA mas recordo-me deste livro num dia em que o Povo irlandês se voltou a dividir, de um modo diferente daquele com que se dividiu há um ano. E digo para mim que há algo de estranho naquela terra verde que faz com que nenhuma espécie de serpente se tenha desenvolvido naturalmente na ilha. Seja o que o Povo irlandês decidir, tenho a certeza que ele guardará algo do nosso sonho, sempre. E que, quando for necessário, Michael Collins voltará a levantar-se numa praça brumosa, acordando as pessoas com a sua voz misto de mel e de cana-rachada, coma a sua imprudência de bêbedo insubmisso e a sua luz de chama verde, verde dum fogo tímido, mas que até debaixo de água, da água cinzenta dos dias de trabalhos e desemprego, se incendeia sem explicação. Como se houvesse uma Primavera algures, que ficou ardendo independente, no coração de povos dispersos e submetidos pela mesma cinzentura da estepe.