26.10.10

LV - (Re)Leituras: A Queda, de Albert Camus e A Noite, de Élie Wiesel, por André Bandeira

Este livro de Albert Camus, de 1956, que interesse tem para hoje, no tempo diáfano da blogosfera? Camus é mórbido, desconectado, disfásico e morrerá num acidente de automóvel quatro anos depois. Eu respondo: o que interessa neste livro, hoje, é mais que uma coincidência. A Europa está a cair depois de ter comprado várias almas a troco dum Bem-estar que, afinal, era todo crédito vazio dos Bancos. O livro «A Queda» fala num produto luxuoso da Guerra Fria, o advogado parisiense Jean-Baptiste Clamence, cujo nome é um grito («Clemência, S.João Baptista!»), o qual ganhou a vida a defender os fracos mas não foi capaz de acorrer a uma pobre mulher que se ia atirar de uma ponte de Paris, numa noite fria. Ficou, claro, para sempre amaldiçoado por si próprio, «julgado, todos os dias, sem lei», até ele próprio se suicidar, numa ponte de Amesterdão. Pergunto: vamos todos deixar as pessoas aproximarem-se da ponte, crivadas de dívidas e exaustas, depois de lhes termos arrancado a alma (nem a comprámos, sequer) com estímulos diários de prazer físico, a que chamámos Democracia? Ou vamos acreditar que Deus existe em nós e na moça insignificante à beira da ponte, um Deus de Amor, que não advoga bem, que se não sabe defender nos tribunais, que não tem lógica nem calendário, e que não pertence certamente ao feixe de estímulos físicos a que chamamos Democracia? Em «A Noite», descrição testemunhal de Auschwitz, por Élie Wiesel, Nobel de 1986, um relato que tem alguns subjectivismos facilmente explorados pelos negacionistas do Holocausto (os quais não se combatem decretando como crime o seu direito à liberdade de expressão), Deus morre numa criança que é enforcada.Com Camus, Deus é tão surdo que não existe. Num livro, Deus é morto pelos nazis, no outro, Deus asfixia-nos pela Sua ausência e, além da Sua ausência, só existe Inferno. Porquê? Porque não fomos capazes de ser a cápsula dos mineiros, à beira das pontes onde a Europa se suicidou, Monarquia insignificante, transida de frio, sem respeito nem carinho que devíamos ter para com o Passado, o qual vota, quer queiramos quer não, e o seu voto não é democrático. É tempo de um Socialismo liberal, liberal como a promessa que o fascista Mussolini não conseguiu cumprir, socialista como o Comunismo nos mentiu continuamente. E, por cima de tudo, um Rei. Para que, à beira da ponte, na noite escura, uma cabeça dourada nos encare iluminando os vãos escuros que não queremos ver. Uma cabeça um pouco maior que o tamanho natural. Como o Passado que se agiganta de cada vez que fugimos dele e que está lá, na cidade nocturna, para nos guiar, não para nos assombrar. Porque só nós, com a nossa violência e o nosso egoísmo, com a nossa animalidade, é que nos assombramos.