8.10.07

(Re)leituras- I, por André Bandeira

Reler a Tese de Doutoramento do Padre. Isidro Alves, "Il Cristiano in Cristo - la presenza del cristiano davanti a Dio in S.Paolo". De 1980, já lá vai tanto tempo...
Lembro-me de ir, por recomendação de alguém, ver o Padre Isidro na Universidade Católica. Eu tinha uma Tese de Mestrado sobre S. Paulo, em que defendia basicamente que as "autoridades" da Epístolas aos Romanos, 13, 1-7, eram um "demónio" ( o que era parte da verdade) e com essa natureza deviam ser entendidas. Eu recusara a orientação, numa Faculdade de Direito sardonicamente positivista, o Padre Isidro era um especialista em S. Paulo e eu ia bem recomendado. Quando cheguei, sentei-me. Três ou quatro esperavam por ser recebidos. Quando o vi chegar ( nunca o tinha visto) dei com um homem ainda jovem, carregado de dossiers, com um ar extenuado. Disse para mim próprio: "Quem sou eu para estar a incomodar este homem, carregado de trabalho, com a minha tesezinha?!". Quando a secretária chamou por mim, certamente que ninguém respondeu.

Mas reler a tese do Padre Isidro faz bem, nestes tempos em que todos se reclamam
proprietários de Deus. Nós não temos Deus, antes, por Cristo, estamos perante ele. Perante Ele, como um tribunal, perante ele como um vítima perfeita para ser sacrificada. E a luta constante na nossa vida para sermos essa vítima perfeita, sem mancha, quando vier o sacrifício da Morte que não marca hora mas nunca falha, é o modo de nos mantermos sempre presentes. S. Paulo sabia isso, sabia o que era ser presente ao julgamento, terreno e divino. Talvez fosse demasiado entusiasta por acreditar que Cristo era o Messias, tão certo como quem conhece os rituais judaicos, a filosofia popular helénica, as seitas gnósticas e os mistérios romanos, para não falar dos Diógenes incorruptíveis do Areópago. Talvez, Saulo, o perseguidor, continuasse a correr, depois de ter caído em Damasco, com o mesmo ardor, desta vez sem armas. Estar presente. Apesar de S. Paulo ser aquele judeu pequenino e careca, gesticulante como um mediterrânico, falando um mistura de latim, grego e hebreu e com ataques epilépticos, em que o misterioso gnosticismo era anti-gnóstico, em que a crença no Messias vinha de fora, da poeira de Damasco e que achava bem todas as deduções místicas do seu tempo mas que nem todas lhe convinham. O judeu que nunca teve um sistema nem se ufanou de o não ter, com tiradas como as de Diógenes a Alexandre, mas que sempre correu para estar presente, tendo tido a sorte de ser talvez amado por uma mulher, enquanto cosia tendas para sobreviver e ela, administradora de uma casa de tecidos, o olhava com curiosidade. Teria o fariseu Saulo arranjado apenas uma nova fileira publicitária? A diferença entre "ter Deus" e estar presente é que, como Sto. Agostinho depois exprimiu, só fica o Presente, sem Passado nem Futuro, só o diálogo cara-a-cara em que talvez o gesto de abertura, como quem pede para falar, seja o da oração. No fim de contas, descobri afinal outro sentido para "autoridade" que o Padre Isidro bem sabia: falar com sinceridade porque "coração", para os gregos das praças e do Mar, era o Homem todo e integral. Desculpe, Padre Isidro não estar quando me chamaram, foi essa a minha forma de "falar" com coração...ao modo de Marcel Marceau.

1 comment:

Anonymous said...

Caro André,

A Moral do sacrifício na minha humilde opinião é de origem bárbara, e o conceito de oferecer-se como "vítima perfeita" é absolutamente doentio, patológico.
Faz de Deus um Sade, um Moloch, um predador psico-carnívoro, além de um jurista, presidindo ao tribunal.
Esse Deus não existe, ou por outra existe, é de origem semita, chama-se Jeová, e está sempre a preparar terríveis vinganças e julgamentos extremos. Foi inventado de "toutes pièces" por gerações de escribas acocorados à sombra do poder temporal.
Além disso, e mais importante, desde há 2000 anos foi revogado para os limbos da memória histórica pelo Advento de Cristo, que não quis mais vítimas nem mais moral de expiação contínua.
Por isso eu penso que a atitude de vitimização e penitencialismo que o meu amigo advoga é profundamente anti-católica, embora tenha tido os seus fiéis e correntes dentro do cristianismo. Mas isso não quer dizer que esteja em consonância com tudo o que o luminoso Sermão da Montanha (visto doutro modo, o Sermão para a Alma, ao mais alto nível, o "summit" crístico) nos continua a dizer.
A santidade se tem algum rosto concerteza não é o da continua e trágica noite obscura, mas está mais além, com os pés firmes na terra da alegria, onde não há penitencialismo em entregas regulares e masoquistas de vítimas perfeitas, continuidades atemporais de atitudes molochianas.

Paz,

Armando Pinto Faria