19.11.05

Balada Triste para o 1 º de Dezembro, por André Bandeira


(Fernando Botero, mujer llorando)

1 – Não chores Maria, Mariazinha de Portugal, porque já não tens nada, nem um tostão ( só tens o cartão). Não chores sobre a enxada, não quero ver a tua cara triste ao lado da figueira partida pelo relâmpago. Tantos anos a trabalhar, a bulir, a limpar chãos, a virar frangos. Tens as mãos secas. Tudo só para poderes ter uma casinha, e dois filhitos e um pouco de piedade do teu homem. Talvez umas fériazitas na praia e um Natal feliz.
Não chores Maria, Mariazinha de Portugal, que já nem há horizonte para crestares mais a tua pele modesta e humilde na esperança de amealhares uns tostões.
Segura, segura o teu filhinho, não vá ele comer a granada que terás que dar ao Sultão para chegares cada vez mais cansada e cada vez mais tarde. Não virá um Emir bom que, no meio da caçada, se condoa da tua fadiga...

2 – Os valores não são as constantes da conjuntura mas as constantes das constantes. Se um Homem, na sua vida, puder lutar em campo aberto, por um único valor que seja, já se pode considerar afortunado.
Se alguns de memória curta (ou por ignorância deliberada ou por encobrimento) julgam que “Valores” é apenas vencer a próxima curva de uma corrida sem partida nem chegada, onde os atletas entram e saem a qualquer momento, então é porque é um bicho... e um bicho encurralado no seu próprio uivo.
Os valores implicam Ordem mas a Ordem não é uma coisa que alguém se lembra de repente. Ela já existia antes, apesar da Autoridade que se ridiculariza, da desolação dos Soldados, da venalidade dos Juízes. O país tem uma Ordem de há nove séculos, não fomos nós que a inventámos. Sim, connosco os Antepassados também votam.
Depois, a Ordem implica uma batalha (do Toro) interior. Que ninguém pense que, sem auto-disciplina e um certo número de renúncias, poderá alguma vez adquirir a Ordem (ou o que resta dela) nacional.

3 – “Valor” significa invejar aquele que se atirou à água para salvar alguém e não se salvou a si mesmo. E invejá-lo como quem se apaixonou e nem consegue dormir.
O princípio de que nenhum ponto se dá sem nó, que tudo o que se pensa tem intenções pérfidas, que de tudo se faz uma história sórdida, é apenas a falta de ar com que nos pretendem fazer cavalos dum motor de explosão, por saturação. Respira fundo, pois. Eles vêm aí. Levanta-te da cama, pois. Eles estão dentro do perímetro.
A Ordem de Portugal é municipal mas o país ficou reduzido ao município de Lisboa e os outros municípios são pequenas Lisboas. Por isso, é preciso partir para a Serra, fazer Serras levantarem-se do subsolo das cidades.

4 – O dia-a-dia não é neutral. Os dias cada vez ficam mais curtos e a noite do olhar não amanhece. Nem o trabalho, nem o modo de vestir, nem o convívio de homens e mulheres que nada têm a ver uns com os outros, às vezes 18 horas por dia, são neutrais. O trabalho, o dia-a-dia é já uma batalha onde a derrota (a despromoção, o despedimento, o ostracismo, a doença profissional) são veras resistências à tortura.
É preciso algo que una todos os infantes nesta frente. É preciso criar redes de apoio, de socorro, santuários e covas de lobo. O dia-a-dia já é ardente. Quando nos olhamos ao espelho, de manhã, tenhamos a coragem de dizer: “ meu nome é Combate”.

5 – É preciso enfrentar a venalidade moral e o luxo asiático que alguns continuam a exigir. Não tomemos o repente pela coragem, nem a seita pelo abrigo. Depois do ciclo dos Fundos Comunitários há que aprender o que só um povo de 9 séculos sabe: que tudo ainda é verde e novo e que só no Desconhecido o Sol aconchega a Memória.

6 – Não chores Mariazinha de Portugal, olhando envergonhada a renda humilde, na orla da tua saia. Eles apregoam e gritam na feira, voam as mãos dos vigaristas sobre os copos trocados e retrocados, mas quem vai contar a história és tu, mesmo do teu último fôlego. Se cais sobre a enxada, o coração não pára. O Sol, a bendita chuva e a santa neve te levantarão.
Hão-de vir quarenta, Maria. Hão-de vir quarenta cavaleiros, do estertor da desolação e da vergonha. Os pés nus dos peões no campo de Aljubarrota hão-de, a uma ordem misteriosa, fixar-se todos ao mesmo tempo, no chão, quando no silêncio não se ouvir senão o tropel.
Hão-de vir quarenta, Mariazinha. Como um feixe negro no meio da seara. Como um souto de pinheiros queimados, no alto do monte.

1 comment:

Anonymous said...

Grande texto, emendo, poema!
Interregno(JSM)