6.7.07

Devolução, por Pedro Cem

Toda a gente sabe que faz bem olhar-se ao espelho. É uma prova de vida e um aproveitamento da ligeira luz que emana do rosto, a qual, de outro modo, se desperdiçaria. Narciso apaixonou-se por si próprio, não porque se viu ao espelho mas porque se imaginou para além do espelho. A filtragem da Realidade pelo Eu, contudo, passou a ser uma duplicação da Realidade, uma carga excessiva que incluímos e que nos provocou uma vertigem pelo esforço imprevisto e, portanto, uma súbita aproximação da Lonjura, contra a qual reagimos homologamente à ressaca.
Ora ser um "Narciso do vício" não é nunca, como Narciso, afogar-se no lago, mas viciar-se no preliminar do espelho, na reflexão do Eu que pode ser elevada à escala televisiva se, entretanto, o nosso engenho doentio montar um jogo de espelhos. Nesta Televisão multicanal do Eu, o Eu ficou com Império mas ninguém lhe reconheceu a Propriedade, sobretudo em direitos de autor.
Então o Eu tornou-se imperial e, com a Democracia, passou à Tirania dos universos subjectivos paralelos. Finalmente, com a sondagem de opinião e a Astrologia, passou à Tirania Absoluta ( aquela que já não se preocupa sequer em ser amada) ou seja, as dos universos infinitos paralelos.
Como proceder? Voltar às luzes mais antigas. É de evitar, porém, o regresso súbito do Filho pródigo à casa do pai corrector porque o sado-masoquismo é outro fantasma do Eu -- o excesso de alimárias na noite fazem do cemitério um cabaret, revogam as trevas e suprimem o Dia feito de dias em que todos nascemos e declinamos, como o urso que hiberna ou a andorinha que parte.
Em que consiste a Devolução? Para já, em devolver o limite da soberania a quem sempre pertenceu: ao Soberano. Um Soberano é um busto que absorve a luz no meio do jogo de espelhos. É um Indivíduo reduzido ao mínimo, refractado na luz das suas visões narcísicas e que "faz cabeça". Uma forma em forma de ser Humano, a única com quem podemos dialogar, sem nos imitarmos num constante desfazamento temporal, como na imagem do espelho. Por isso é tão importante ter um bom Soberano e, se não o há, há que o fazer.
Em vez de um Chefe emergente, como um Dux ou ditador republicano que tem de fazer da vida uma guerra permanente para justificar o lugar, pedimos um chefe convergente onde o estado de guerra é excepcional. Enquanto a Democracia inventa a máxima de que "as Democracias não se guerreiam entre si", as guerras de clãs e de máfias substituem os Estados fracos da Democracia onde os Soberanos incontáveis são fortes, seja um drogado com uma seringa à frente duma dona-de-casa ou um espertalhão político a trepar para o tôpo.
Por fim, organizar a devolução das cinzas à terra e devolver o pó, ao pó.
Quer isto dizer que "Soberano" é o nome de um funeral, ou de uma festa de despedida para um suicídio anunciado?
Não. Dar o "pó ao pó" é fertilizar em época de semear. Não é acumular fertilizantes por alguém que "era capitão da sua alma"" e explodir com 157 inocentes ( se Timothy McVeigh era capitão da sua alma, ninguém é capitão do mar sem fim). Nem é um crematório (limpeza étnica, sanidade moral, revolução administrativa) pois os vazios que se utilizam numa correcta política da morte são apenas câmaras ou bôlhas de gás numa concentração tôsca, vagueando no Cosmos. O verdadeiro Vazio emerge de todas as coisas, vai muito para além da nossa percepção e tudo o que se pode fazer é rezar a uma dádiva em contínua fluência: até a Providência nos matar de fartura.
Quer isto dizer que tudo se reduz à busca da melhor oração ou do melhor truque místico?
De-volver não significa apenas volver mas saber a arte de volver.
As pessoas que gritavam pela Revolução julgavam quebrar as tábuas da Lei, sem saber que gritavam para que tudo voltasse ao mesmo lugar. Os que gritavam pela Reacção gritavam para que tudo voltasse ao mesmo lugar, só que a partir dum ponto mais antigo ou mais lento. O círculo era vicioso como as cismas de Narciso.
O Devolucionário volta a si mesmo, ainda que já esteja ultrapassado e sobretudo porque está ultrapassado (bendito seja!) pois só assim consegue deixar de se alienar, de ser um outro: passa a ainda não ser. Se "já não fosse", nem sequer era ultrapassado. Era apenas extinto. Como numa canção antiga da luso-brasileira Geninha Melo e Castro, o "Devolucionário" fica no "ainda não" o que não é mau conselho para os esquerdistas precipitados, uma consolação para os eunucos de Deus e, sobretudo, uma palvra de esperança para a "coisa amada" de Camões que busca o "amador" e está no seu, muito justo, direito de viver direita.
Tornar-se no que se é, quando já não se é, é como escutar, por entre os silêncios de que a Música está cheia, um ritmo vibrando desde sempre debaixo dos pés. Devolver é deixar para trás e partir de viagem.
Mas o devolucionário é um Viajante célebre. Se compramos um bilhete e esperarmos sempre no mesmo lugar à hora marcada, para darmos um passo e entrarmos da carruagem certa, podemos muito bem cair para o abismo. Isto porque nunca saímos dum cais para um combóio. Passamos sempre de um combóio para outro, quando compreendermos que somos maquinistas de um pesado combóio de percepções, carregado de inércia, o qual partiu e se alongou há muito tempo.
Devolver significa dar, abdicar do extra que somámos ao todo, com o nosso Eu (um extra do Todo é apenas uma ferida aberta). Com isto retornaremos ao EU essencial que se está continuamente a desfolhar como num Outono das Colheitas eternas.

E aqui está a Devolução, na Natureza, na Opressão, na Dor e até para Portugal.

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