Deixei-me pela noite fora a ver umas reportagens de um canal de televisão alternativo, chamado "Vice Channel": duas reportagens paralelas sobre um grupo de Heavy Metal do Iraque e outro da Noruega. O primeiro, de nome Assiricatura e o outro, o conhecido grupo satanista Gorgoroth, de Espedal, perto de Bergen, numa região onde é possível chover 100 dias seguidos. O curioso do Heavy Metal é que ele mobiliza directamente, em filmagem e ao vivo, energias muito directas de agressividade. A reportagem sobre o grupo do Iraque, contava como três jovens, Firaz, Faisal e Ammanwan, sobreviviam a tocar as suas guitarras e a falar o seu Inglês de Nova York, numa Bagdad onde morriam duzentas pessoas por dia em 2006, onde todos se protegiam uns aos outros, sob pena de levarem um tiro, por não pagarem a protecção ou falarem inglês. Como dizia Firaz,«mataram Ali Bábá e deixaram os quarenta ladrões». Por fim acabaram todos refugiados em Damasco, vivendo em condições muito difíceis, quando o número acumulado de vítimas provocadas pela guerra subiu quase a 1 milhão. Já com pequenas famílias próprias, lutando por reunirem ainda hoje, fora do inferno de Bagdad, a suas famílias mais vastas, estes jovens demonstravam uma coragem incrível, por trás dos seus sorrisos tristes. Como dizia um outro mais jovem que se reunia a eles, em Damasco, pernoitando sempre com aspecto limpo e digno num dormitório de refugiados, entre trabalhos precários: «eu quero ser livre, quero ser feliz, como toda a gente, não quero que me considerem um terrorista porque sou iraquiano». A canção dos Assiricatura, «Massacre», dizia:«Roubaram-nos as terras/Mataram-nos as famílias/Só há um passo para a Morte». Ao fim, Faysal transforma a sua revolta juvenil de Heavy Metal numa mensagem concreta para a televisão:« You motherfuckers who made of my land a land of war».
Saltemos para a Noruega. Ghal, o mítico líder dos Gorgoroth vive isolado no país do Inverno. Em tom de queixa diz que andou até aos dezoito anos numa escola local,em que os únicos alunos eram ele e mais um colega. Leva os repórteres por um caminho difícil até um cabana na montanha, sempre nevada, de madeira cinzenta pelas intempéries, de aspecto mais desolador que aterrador. Ghal inspira medo a toda a gente, pois foi acusado de torturar um outro indivíduo durante seis horas e beber-lhe o sangue, ou obrigar o próprio a bebê-lo. Um dos seus correlegionários diz que a diferença dos Gorgoroth é que querem genuinamente espalhar a «palavra de satanás».Ghal passou uns anos na cadeia que o levaram a interromper o curso de Pintura, mostrando algumas telas mal pintadas, com temas em que o sangue e a violência são apenas espelho de uma existência desolada. Interrogado sobre o crime que cometeu diz o que lhe disse o advogado (foi legítima defesa) e que «é como uma tela, quando se começa tem de se ir até ao fim». Arvora-se em missionário do anti-cristianismo, diz que se deve confiar tudo à Natureza «que sempre flui», satisfazendo-se com esta máxima superficial e, depois de o ilustrar com a cabana no cimo da montanha, fala no Super-Homem e no único deus que existe (por oposição àquele que nos está sempre a dizer que «não devemos fazer isto» ou que «devemos fazer aqueloutro») e que é o nosso deus interior. Ghal, que soa mais ou menos a «maluco» em norueguês, tem uma cara realmente vertiginosa como um fiorde visto duma ressaca, mas no fundo, os seus silêncios, as suas ideias de pacotilha e os seus maus quadros (com a excepção de um desenho de um rapaz nu)não passa de um criminosozito juvenil que o sistema noruguês tratou demasiado bem. Entretanto, tem o Heavy Metal para expandir na zona do Báltico e na Europa do Norte, todas as frustrações que não conseguiu vencer, por ter esperado até aos 18 anos para sair de uma zona despovoada onde o peso do Estado social não estimulou essa calor humano face aos elementos que, em tempos, caracterizava a gente da Europa do Norte.
Em conclusão, o que há de satânico, nestes dois casos, é a nossa incompetência, disfarçada de mentira e irresponsabilidade: dum lado, uma Guerra que se perpetuou graças ao racismo contra a cultura árabe. Do outro, uma teatrada de terror de série B, que já ninguém teve força (senão um Polícia noruguês que contou a história toda e levou a investigação até ao fim)para proibir sob um regulamento mais ou menos assim: festas e celebrações, só aos domingos e nos termos da lei.Satânico é o disparate que perdura e que, por lassidão ou covardia, não queremos corrigir, tornando-se com o tempo-- e apesar de todos saberem que é um disparate completo -- algo real, duma realidade distorcida em que já nada direito parece correcto.
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