20.12.05

Um “Mal francês” no Mundo moderno por André BAndeira

Se Marcel Proust não tivesse existido, nada disto teria acontecido, nomeadamente a programada destruição do carácter por já trinta anos de Educação pública. Não sei mesmo se as sucessões de Revolução Impressionista, Cubista, Surrealista na sala de aula e, fatalmente, de Revolução psicadélica no recreio, foram mais que a vingança da frustração dos professores. Não digo isto porque Proust seja o culpado ( ele foi de certeza uma grande vítima) ou porque não houvessem outros grandes espíritos “gay”, como Óscar Wilde. Este aliás, descreve bem a sua “passagem” em Crescent Street de onde saía, feliz, com a sua linda mulher: ao ver os prostitutos na fonte de Eros percebeu que aquele era o flanco por onde o mastodonte vitoriano apodrecia mais depressa. Depois, bastou deduzir...

Do que sei de Marcel Proust, retenho dois episódios, um importante, outro sintomático:

O primeiro é aquele que lhe traz o criado do Ritz, Vesti, quando a sua obra já conseguiu o reconhecimento. Vesti, diz que o Corriere della Sera anuncia que “Em busca do Tempo perdido” (designação geral da Obra da sua Vida) é um romance que “se trepa, trepa sem saber onde a escada acaba mas, de lá de cima, podem-se ver sempre mais coisas”. O outro é o diálogo com o negociador inglês, de Versalhes, Harold Nicolson, também em Paris, num restaurante da moda, durante o qual discutem homossexualidade, reconhecendo-se aquele que foi o grande teórico da Diplomacia do séc. XX , como “não percebendo muito do assunto” e respondendo-lhe Proust que ser “gay” não é uma questão de natureza, mas de “sensibilidade”.

O que um episódio quer dizer, é que o simples criado, certamente grato pelas perdulárias gorjetas de Proust mas conhecedor como só os que velam clientes solitários conhecem, sabia o valor iniciático da homossexualidade. Talvez fosse italiano da Magna Grécia e mais antigo, talvez fosse humano como um italiano e soubesse que a consagração de Proust, no jornal do regime, significava que a Minerva Itália o tinha aceite. Ou seja, o simples criado sabia que Proust estava autenticado para o Parnaso.

O que o outro episódio quer dizer é que o pragamático Nicolson não tinha sensibilidade para distinguir os vários sentidos de “délicatesse”.

No primeiro caso, a contida voz do Povo quebra o silêncio, coroando um extremado ( pela luta pelo reconhecimento e as invejas dos outros "gay") já doente Proust. No segundo caso, a voz do Poder, leva uma resposta elíptica que o deixa de fora, a falar sozinho.

No drama de Proust, que vai desde o tardo-romantismo até Picasso, o qual, uma vez, lhe desvelou à frente um cenário cubista, azul e violeta (encomendado por Jean Cocteau, como encenador teatral e deixando Proust fascinado como se o que visse à frente materializasse algo a que já não tinha forças para se atrever) avulta, acima de tudo, um certo tipo de côr.

A mim, desde pequeno, me fascinam os tons violeta de certas flores moribundas, os tons estranhos dos crepúsculos portuenses onde fui nado e que se não decidem entre a Europa do Norte e a do Sul. Não nego que vi um estranho dia raiar por um Globo de absinto verde, em plena noite e sei que alguém como Proust poderia sobreviver uma eternidade sem ver a luz do dia, apoiado como foi por uma legião de amigos fiéis, porque as suas “noites eram muito mais belas que os dias” dos contemporâneos.

Sei da existência de tons musicais ( de resto, meticulosamente doseados por uma das Educações mais antigas da História, a chinesa) que, ao contrário de nos viciarem, nos despertam para um mundo real do qual não temos o direito de sair nunca mais. Decerto que a realidade da Primeira Guerra mundial, que gerou Hitler e Mussolini, em que pelo menos um batalhão de bravos, alemães, russos, ingleses e franceses preferiu ser fuzilado pelos próprios camaradas, como amotinado, a massacrar-se num dos maiores absurdos da História Humana, não era senão um sonho do diabo.

Decerto que as perversões de Proust no fundo do poço de Sodoma não se arvoravam a ser uma revolta politicamente correcta mas, ao menos, constituíram um fecho inviolável da sua não-colaboração. Enquanto alguns dos mais viris pederastas se faziam morrer como heróis, na trincheira, Proust – que só não o fez por ser demasiado frágil – sofria os horrores dos seus amores inviáveis, fatalmente, até à exaustão.

Lembro-me de uma discussão que tive com um “gay”, invocando a série inglesa “Upstairs, Downstairs” em que um lorde pintor é gozado educadamente por um artista faminto, mas com génio, que lhe explica que se não pode “fazer da vida uma forma de arte”. Ora o “gay” espetou-me com Proust na cara e eu fiquei sem saber o que responder.

Se Proust fez da vida uma forma de arte e segui-lo é ser iniciado nas miríades de pormenores dos entretantos que fazem a substância humana (onde, por exemplo, o Feminino/Masculino, não passa de uma cortina de fumo) e ninguém pode recusar esse cálice, então tudo o resto é Burocracia ou Loucura. Até Deus é Burocracia e o bom Abade Meugnier, celebrou sempre missa pelo inconvertido Proust, depois deste morrer.

Mas, Proust, de que serve tudo isso, se nós não viemos da Terra, mas viemos do Céu e a ele voltaremos?

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