22.4.07

Num carrinho, para a Lituânia, por Peregrino

Aí vou eu, para Vilnius. Resolvi ir pela terra, com o dedos na areia. Dormi em combóios, meti os joelhos no queixo, entre frios e calores, por camionetas tremidas. Espreitei filmes porno em hotéis de passagem, esmaguei o nariz contra vitrinas de lojas caras. Numa Igreja toda partida pelos esbirros de Estaline, com buracos abertos para câmaras secretas onde se esconderam crianças judias para fugirem aos SS, vi uma pobre e humilde mulher lituana a rezar. Tinha um ar tão humilde e tão contraído, como se não houvesse ninguém no mundo que pudesse interessar-se pelo seu caso, tão difícil e tão obscuro. Rezei com ela, em silêncio, sem que me visse. Andei em combóios polacos, com gente de trabalho, sem peneiras, admirando o seu casaco poeirento como se fosse um trajo de reis. Ouvi polacos com manias de conquistarem a Lituânia e a Ucrânia, só porque generais e capitães ali tinham deixado o coração enterrado, em outras dores e outras quimeras. Pelo vale todo, que vai dos Urais até Bordéus, a Primavera espadanava, sem a beleza épica dos Russos, nem as delícias do Ocidente. Debaixo do braço levava um saldo de Spengler, com as suas obsessões, afinal tão passsageiras como as flores amarelas da Primavera. Na Lituânia ouvi falar demais de Igrejas e lembrei-me como se pode falar de Jesus e nem o ver a passar. Gostei de voltar nas camionetas onde lourinhas polacas e velhotas de Varsóvia se acomodavam como podiam para viagens humildes e tive saudades da humildade com que as pessoas viveram os seus longos dias de socialismo, com um saco às costas, aceitando tudo com uma sorriso agradecido. Uma lourinha surpreendeu o meu rosto e sorriu. Sorriu sem convidar, sorriu sem se fazer convidada, sorriu apenas sabendo que tinha um rosto bonito, como as flores da Primavera no seu país, sem cuidar se vestia Prada, ou se viajava em primeira, aninhando-se para a noite sem o mínimo receio de quem a rodeava. Entraram três russos com um saco de plástico a chocalhar de garrafas, quase envergonhados e, quando se sentaram olharam em volta, não quiseram ofender ninguém, foram discretamente para as traseiras. Eu gosto da humildade desta gente, da gratidão que têm por estarem vivos e mais nada. Lá fora desfilavam os bosques, onde os piratas de Januscik despertavam os lôbos ao cair da noite, na grande planície que vai até à muralha da China. E ainda bem que as almas humildes têm lôbos que as protegem durante a noite.

Cheguei aqui e acordei com trinta e dois tiros de um jovem coreano que não conseguia falar com os que o rodeavam. A loucura de conquistar o céu, faz expedições ao deserto e à selva e o suicídio rebenta-nos debaixo dos pés. E o suicídio é contagioso.

O meu pesadêlo alumia-se com o Dr. Paulo Portas, com as suas gravatas bem apertadas no pescoço, brandidno o dêdo com fúrias napoleónicas, com o seu ar de Estaline azul ou com o fantástico Sarkozy que, se fôsse cavalheiro -- sim, se fôsse o que nunca será -- abdicasse em nome da ultrajada Ségolène, ou do maltratado Le Pen. Mas isso é de um conto de fadas...

Ah, quem me dera estar encolhido, com os joelhos no queixo, na camioneta polaca, ou lituana, pela estrada estreitinha dos firmamentos da estepe!

1 comment:

mch said...

Isto sim, são crónicas de viagem e não as parvoíces que habitualmente se lêem nas revistas de luxo que são suplementos de lixo de jornais absolutamente medíocres.
Boa, André