3.4.08

IV- (Re)leituras. A Paixão, de Mel Gibson, por André Bandeira

"A Paixão", do realizador e actor australiano Mel Gibson tem alguns truques conhecidos. O uso, porventura das línguas originais, a caracterização dos legionários romanos como alguns lúbricos solteirões italianos, a possível piedade da mulher de Pilatos por Nossa Senhora e Maria Madalena, o grande traço que Jesus desenha na areia durante o episódio da condenação da mulher adúltera, a exclusão de Barrabás, os dois ladrões demasiado caracterizados, o Diabo como uma bruxa irlandesa e seu filho careca. O costume é dizer que Mel Gibson está cheio de referências àquelas coisas que algumas seitas preferem acrescentar ao Evangelho.
É possível que sim. Mas, por trás dos efeitos especiais, há o traço pessoal de Mel Gibson. O traço pessoal de Mel Gibson está na caracterização de um Jesus fisicamente forte, de um Jesus que parece desses australianos que bebem até cair, aos fins-de-semana, na Austrália, que vê tudo ao contrário quando é arrastado (sendo que faz parte do "ver ao contrário", recordar-se dos episódios da Sua Vida), que consegue sobreviver a todos os golpes até enfrentar a Morte. O desespero do Diabo passa-se num deserto sêco como o da Austrália, o desespero de Judas passa-se ao pé de um cadáver de cavalo, como os limites da colonização anglo-saxónica no deserto aborígene.
O plano da ressurreição de Jesus é bonito até se O ver sair, ao nível das pernas, da sepultura, no plano final. Há nisto tudo muito de um Mel Gibson idolatrado pelas mulheres, conhecido pela sua timidez irreparável ( Mel Gibson -- que é famoso pela candidez das suas declarações -- casou-se apenas graças a uma Agência, tendo sempre repetido que era incapaz de falar a uma mulher de quem gostasse), envolvido quando era mais novo em tareias de bar monumentais e finalmente nu, num leito de pedra.
E agora, por trás de todas estas marcas pessoais, que demonstram o Cristo que há em nós e também em Mel Gibson, o filme "a Paixão" não deixa de nos recordar, a uma segunda leitura, que para além dos que as palavras significam num texto, há uma condição comum a todos nós que é aquela da Paixão de Jesus. Por isso, para além de tudo aquilo que um filme de um ano deixará evaporar-se no éter, há uma mensagem bem humana, sobretudo naquele "flashback" ao Sermão da Montanha em que Jesus diz que "ao contrário, eu digo-vos que rezeis pelos vossos perseguidores", porque de outro modo "não haveria nenhum mérito". O possível para os Homens, o impossível para Deus.

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