Raúl Solnado era uma figura da transição. No seu rosto, no seu estilo de humor, na sua carreira e nas suas realizações, Solnado era uma figura daquilo que fica em Lisboa, apesar das épocas mudarem. Um moço da Madragoa, como Solnado, caminhava pelas ruas como se o fizesse por uma floresta. Uma floresta com muitas árvores, umas de sequeiro, outras de regadio. Penso que, no meio das ventanias que assolaram a floresta de Lisboa, a qual também tem os seus micro-climas, Solnado resolveu ficar sempre um bocado garoto porque isso lhe permitiu continuar a percorrê-la livremente. Por isso, o seu poema de eleição, era o «Liberdade» de Fernando Pessoa que acaba a dizer, para quem o quiser ouvir, em «O mais importante de tudo isto/é Jesus Cristo» (que nada sabia de Finanças/ nem consta que tivesse biblioteca). Solnado era certamente um homem bom, mesmo antes de morrer, quando a TV lhe negava uma série de projectos, talvez porque precisasse de um Humor feito com meninos perversos, em vez dum humor incondicional. O seu monumento é a Casa do Artista, que ajudou a fundar e que amparava os que nos fizeram rir e sonhar e deixámos na miséria, porque se espalhou em Portugal que a História do Mundo é a da Luta de Classes. E Solnado, no seu amor, misto de histeria, de loucura, de fragilidade que não era feminina nem postiça, nos seus repentes miméticos de pepineira, em que fazia uso da sua própria gaguez, lá fez História lutando como um garôto do cêrco de Lisboa, contra as Classes. Porque o riso deita abaixo as muralhas de Jericó, em que encerrámos, como leprosos, artistas como António Calvário, Artur Garcia, João Maria Tudela, Florbela Queirós, em que só a morte adiada de José Calvário ou as mortes rudes de Badaró, Raúl Indipwo ou Cândida Brancaflor nos chamam a atenção.
O seu monólogo contra a Guerra, certamente não inteiramente original, mas que ficou dele, pertence ao património universal da paz, merecia ficar no espólio de Hiroshima e Nagasaqui. Antes de Solnado, ele foi dito pelos camponeses da Idade Média, pelos espezinhados da Civilização industrial, pelos soldados nas trincheiras de Verdun, ou por aqueles que, dois dois lados da Europa, cantavam Lili Marlene. E se Solnado estivesse ao meu lado, havia de me perguntar se a Lili Marlene dava descontos a gagos. E se eu lhe perguntasse porquê, havia de me responder que um gago não dá uma sem repetir.
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