Este livro dos anos sessenta, representa muito da revolta do Brasil, na busca da sua identidade, sobretudo numa época em que o Brasil estava à mercê da identidade protestante e altiva dos EUA. Hoje, o Brasil tem um metalúrgico como Presidente, elegeu uma mulher para lhe suceder, e os EUA são presididos por um homem de origem africana com o nome de Barack Hussein. Todos estes factos, por si, são, a meu ver, positivos, mas o que se desdobra deles é muito mais complexo. O livro relata como um príncepe congolês, Galanga, foi feito escravo pelos seus inimigos, no meio do séc.XVIII, vendido aos negreiros portugueses e acabou escravo em Minas Gerais, com seu filho. Mas não acabou aqui. Estava só para começar. Galanga, baptizado Francisco da Natividade, foi libertado por um padre, adquiriu terra a um preço simbólico do seu antigo proprietário e trabalhou de sol a sol para libertar mais de 200 dos seus companheiros de tragédia. O Governador português, sem invocar outra Lei que a do senso político e humano, permitiu que ele se tornasse Rei da sua nação congolesa, dentro da capitania portuguesa de Minas Gerais. E recebeu a coroa do pároco local. É que a população africana não aceitou sempre o jugo da escravatura, neste lugar do Império português. Combateu-a, fugiu, revoltou-se, sustentou verdadeiros reinos dentro do mato, como o de Zumbi dos Palmares, no interior de S.Paulo, e ainda hoje mantém unidades agrícolas autónomas que se impõem ao Estado, os quilombos. Xico Rei não fez um quilombo no meio dos outros que o desprezavam. Fez um Reino. Reinou porque a sua humildade, a paz que irradiava da sua maneira de ser, punham os outros todos em respeito. Reinava pelo coração, o qual se moldara na violência hierárquica, da tardia Idade Média da África sub-saahriana, no Holocausto da escravatura negra, na primitividade da alma humana. Mais que pelo Poder, a sua autoridade era legítima porque se baseava em algo anterior a ele, que o escolhera para reinar e o seu reinado evitou muito derramamento de sangue. A população negra era mais que o dobro da população branca ou mestiça, juntas, de Minas Gerais, e, por várias vezes, esteve para se levantar e cortar a vertigem diabólica duma economia baseada no ouro. Um Governador esteve para o açoitar em praça pública, já velho e doente, porque Xico-Rei não se conseguiu levantar à sua passagem. O médico português Timóteo pôs o Governador em respeito, lembrando-lhe que nem um escravo podia ser açoitado se estivesse doente, quanto mais um cidadão livre! O primeiro açoite teria significado o massacre dos portugueses de Ouro Prêto, naquela mesma tarde. Xico-Rei morreu muito depois, revivendo em delírio na batalha de Marmara, em que, muitos anos antes cavara o caminho da sua própria escravatura, por intervir contra um chefe ilegítimo o qual tomara o poder pela violência. E aqui me ficaram duas imagens deste romance histórico: um Rei que se levantou da escravatura pela sua humildade e constância e um Governador autoritário e autista que, felizmente, foi detido a tempo por um médico, antes de deitar tudo a perder.
3.11.10
LVI - Chico Rei, de Agripa Vasconcelos, por André Bandeira
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