21.6.05

Cunhal, Vasco e Eugénio: De Roma por André Bandeira


As três fataças

Foram três os peixes que saltaram da telha neste Verão anunciado quente. Talvez como quando, há trinta anos, resolveram aquecer o Verão que se traduziu num esfriamento sucessivo, tão frio que os heróis de Portugal se terão hoje de ir aquecer nos currais como dizia outro maestro Fataça, desta vez disputando a palha aos porcos, como não previra Orwell.

O primeiro foi Cunhal. Entrevistei-o uma vez em 2000, em Paio Pires, para um jornaleco de Sesimbra. Quer dizer: fiz-lhe umas perguntas. O Homem entrou em braços mas, quando se sentou, entre risinhos, silêncios majestáticos e debitares ritmados, era o Cunhal de sempre. Nenhum político o vencia aos pontos. E, por cada vitória, mais fugíamos dele, da sua Soberba.

Curiosamente, a ideia com que fiquei foi a de que o Cunhal ‘era uma velha conservadora”. Algo nele era dogmático, doutrinário e pronto a gritar “Sacrilégio!”, como vi poucos. Despediu-se com galhardia romântica para um auditório predominantemente de velhos operários, enquadrados pela paisagem mortífera da antiga Siderurgia Nacional. Disse, com um pé no estrado como Cyrano: ‘ Camaradas: se sonhais em um dia ter uma casa, para viver, encontrar alguém com quem casar e talvez, ter um pouco mais de saúde…não desistam de sonhar!”. E saíu. Em braços. No delírio!

Cá fora, operários do Sul, num cenário desolador, humildemente agradecidos pelas minhas perguntas acutilantes mas respeitosas, ajudaram-me sem que ninguém lhes pedisse, a que eu tirasse o carro. Eu tinha-lhe perguntado “ Sr. Doutor: volvidos todos estes anos, não acha que a descolonização nos afastou definitivamente de povos, como os de África aos quais estávamos ligados?”. Uma moça angolana, sentada na mesa de honra olhou-me e ficou com um ar perdido no horizonte durante muito tempo porque há coisas no tom da voz que as palavras nunca exprimirão. Cunhal, o Grande, respondeu-me: ” O nosso Partido não fala em Descolonização mas em luta simultânea de libertação nacional, em África e em Portugal”. Ah, Cunhal, bela a “liberdade em simultaneidade” que em Angola os angolanos se continuaram a ‘libertar” por mais trinta anos, uns dos outros, até fazerem cerca de meio milhão de mortos ( contra os cerca de 12.000 da Guerra colonial) e que nós estamos bem perto de sofrer o eterno nascimento excruciante de Portugal!

A primeira Fataça a saltar da telha foi o Vasco Gonçalves. Não suportou certamente o calor com que incendiou o Portugal metropolitano em 75, turbando a visão do Povo para a sua missão universal e deixando-o num torpor de férias e festejo que dura até hoje, sobretudo na capital. Com ele ficou a sensação de que Portugal só tinha que ‘descomplexar-se” e passar a colher durante os próximos oito séculos, os frutos do Paraíso que semeara com todo o tipo de lágrimas, em oito séculos de História. Portugal passou a ser uma espécie de Guiné metropolitana, em libertação permanente, Portugal era afinal a “Ilha dos Amores” dos Lusíadas. Em cada rosto Igualdade, Terra da Fraternidade, eram todos uns gajos porreiros, todos de cara aberta sem táticas escondidas.

Pois o Vasco, que gozou de certeza, o legítimo desejo de um Povo encontrar um rosto Humano, numa varanda, que o espelhe, está resumido naquilo que revelou mais tarde ou seja que fora militante comunista desde muito antes do 25 de Abril. Mas que nunca dissera! E naquilo que Cunhal revelou em Paio Pires, como se fosse um doce, ou um Amor proibido mas comovente revelado ao fim de muitos anos: que tropas sublevadas no dia 25 de Abril marcharam pelos quartéis com a bandeira do Partido Comunista Português e que só a trocaram pela Bandeira de Portugal à saída, talvez para alguns inocentes marinheiros, julgando que faziam o que de melhor havia para a sua Terra, a beijarem de lágrimas nos olhos. Cunhal disse isto com orgulho senil ou eternamente infantil e acrescentou que havia fotografias.

Por fim, o pobre Eugénio de Andrade. Pouco sei de poesia para o julgar. Não o julgo certamente por aquilo que o caracterizou desde a nascença como agora alguns tresloucados me querem julgar a mim por sonhar em amar alguém de um Sexo diferente do meu e achar que esse amor deve ser das coisas que restam do Paraíso, neste vale de lágrimas.

Sei que os intelectuais da minha idade comunicavam esse seu amor singelo `as vezes com algumas das poesias dele. Descobri horrorizado mais tarde que alguma da sua poesia se inspirava em algo repugnante. Onde ele estiver, que dos três era certamente o mais inocente, que ele me perdoe por não o compreender inteiramente e que o sofrimento que teve na sua Casa da Ribeira, quando abriu lá um barulhento Pub, enquanto ele agonizava ( como um dia frente à do moribundo Ribeiro de Melo, pai, a Intersindical se recusou a desligar os altifalantes) aumentem o brilho do óbulo com que cerrou os dentes pela última vez, ao passar o Flégeton. André Bandeira

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