14.12.05

Retrato de Condoleezza Rice


Tookie Wiliams, vejo a tua cara, que já não tem o sorriso e os elogios da mamã, se alguma vez a tiveste, se alguma vez ela te teve. Vejo-a com os rostos dos que mataste, alguns deles de costas, a desfocarem-se do teu como espíritos navajos. É a última foto antes de levares a injecção fatal na penitenciária de St. Quentin. E vejo cada minuto que perdeste ou ganhaste tentando reabilitar-te e reabilitar os teus, todos os teus, até a mim. Não chegarás ao Templo de Sião, protegido pelo Negus de Ouro, na Etiópia dos justos. Vejo o teu rosto como qualquer um vê o seu próprio, reflectido no espelho, com uma grande dor de barriga, ou uma súbita notícia de cancro ou quando um Amor acabou, subitamente, de um modo grotesco.

Tookie Williams é o meu rosto no espelho. Por cada minuto que perdi ou que ganhei fazendo a Morte de Woody Allen esperar ( aquela que lhe respondia ao “ desculpa lá, tenho de ir. Havemos de nos ver...” com um “Não te preocupes.”) enquanto arranjava um sentido para tudo o que fez na vida, primeiro matando, depois salvando. Como o japonês que rabiscava os factos de um avião a cair e os guardou, para glória da Humanidade, numa pasta que sobreviveu à catástrofe. Como todos os coronéis Aureliano Buendía a olhar a vida inteira para trás, num segundo, frente ao pelotão de fuzilamento.

Sim, Tookie, o teu rosto cheio dum sofrimento sem fim e de uma dureza igual ( sem fim) como King Kong falando no ecrã, de igual para igual, a todos nós. Nada sei da Justiça, falhei em Direito, se calhar não cresci, ou sou tão liquefeito e tonto que não sei vingar-me, acometido que fui dum Alzheimer divino, mas tenho o teu rosto em frente ao meu, Tookie e, por favor, meus irmãos americanos... arranquem-me os olhos!

“É Verão e a vida é fácil”, diz a canção que o meu amigo Chico Varela cantava.

Se bem que vestida com imitações melhores dos costureiros parisienses, Condie ainda caminha como uma menina de côro nas festas Gospel dos EUA.

Se Ariel Sharon dizia, com setenta anos, que não conseguia deixar de olhar para as pernas dela, eu compreendo-o, não por ele ter apenas setenta anos, mas porque ambos se agarram à vida como os condenados da “Montanha mágica” de Thomas Mann. Ambos adiam para sempre o transformar definitivamente do sofrimento, em Passado. Ambos vivem com visões de um Messias que ainda não veio.

E uma tão falta de Eternidade (mesmo uma simples eternidade vazia budista que, depois de o Mundo todo se somar em zero, deixa uma borboleta entrar e pousar-lhe em cima do ombro) dá-lhes a ambos os dons do efémero.

De facto, Condie tem umas belas pernas, como se pode ver pela delicada curvatura sob o joelho, que a saia programadamente descobre, em passos cadenciados. Deve fazer exercícios para permanecer magra mas isso só a deixa como a certos afro-americanos cansados de responder a bocas, de evitar violências e de manter a dignidade, 10.000 anos antes da Redenção.

Não tem nada de Motown, nada de Rap, mas o que mais me magoa é que não tem nada de Soul, uma das maravilhas do Mundo, aquilo que os negros americanos criaram "fazendo nascer uma flor na marca de cada chicotada" ( Levi Condinho, por agora, poeta menor). Nada, nela, tem Rythm and Blues, nada que grite “gerappa”, como James Brown, ao receber o mote das fugas aos negreiros nas florestas de África, dos campos de algodão, das fugas das prisões, das ruas da Droga, do Desprezo e do Crime

O modo como Condie caminha, equilibrando-se com passos de “good girl” sobre uns sapatos de acutilante chinesinha é ainda um modo bonito de andar mas curvou-lhe certamente a coluna. O queixo pende, já gasto, como esses janotas de Harlem, tão caribenhos, mantendo a sua superioridade sexual até ao fim.

Por isso, algo nela também é teimoso, quando o olhar se trai, de esquina e não pode asseverar o halo de sorriso bonito, cheio de delícias, em frente às câmaras.

Condie é bonita mas demasiado extremada pelo fôlego. Condie é amável mas demasiado vencedora da dor, como se a tivesse atirado, definitivamente, para trás das costas, com silogismos luteranos. O que apenas vai mal nela é que, sendo uma mulher de “cabelo duro”, forçou uma moldura negra, sem o brilho das sarças vigorosas e que lhe parte metade do rosto.

E, quando caminha, é ainda uma menina, equilibrando-se nos saltos altos para se juntar ao côro que, quando começar a cantar a Deus, até às pedras, aquecerá o coração. Quero ouvir-te a tocar piano, Condie...

Basta, Condie, de tanto ressentimento!

1 comment: