15.5.06

Dança de Maio, por André BAndeira


Foi a 19 de Maio. Éramos quarenta, primeiro, a caminharmos como a monção, pela caruma. Depois éramos todos, como a chuva de Verão.
Conforme o combinado. Nas cantinas, nas tascas, nas roulottes do Bairro Alto, nas residências, nas mesas das salas de alunos, depois do bar fechar.
Conforme a palavra dada, a única Ciência, o único ouro. Palavra de Estudante. Com H grande, de Hermes o mensageiro. À saída, despi a capa rôta e abanei-a três vezes. Asa de côrvo, galo negro e faminto trepando ao cimo da cubata, em despique com o Sol. Letras despejou-se na Alameda, Direito seguiu-a como o rio volta, sem falar, a cara azul, em direcção ao Mar.. Medicina eperava numa esquina, os de Educação Física vieram de Pedrouços. Pareciam gente de Robin, não conseguiam estar quietos. Éramos os estudantes pobres, os do tremoço e da sebenta emprestada.
Hugo, o comunista, comandava Letras com hesitação – ninguém sabia bem quem éramos, “Tertúlia Académica”, de capas negras onde pouco se usara, de botas da tropa e um discurso vertiginoso, de manhã com relâmpagos. Estudantes que sibilavam os ss, como os cumes da Serra, que se riam como castanholas do Algarve, que olhavam escuro e claro como as planícies do Alentejo, que, depois lhes subia o sangue à cabeça como uma romaria do Norte e que cantavam vulcânicos como o mau tempo nos Açores.
Tomámos a cantina de assalto. Leu-se um discurso bufo que encerrava todos os dicursos e mil tabuleiros voaram pelo ar, seguindo-se o silêncio do jugo que se arreia. Tomámos as caixas, as cozinhas. Tomámos a Reitoria e as páginas dos jornais, fugindo das fotografias como uma caravana beduína. Ah, como a capa negra era quente! Sequestrámos o Reitor. Tomámos os partidos de surpresa. Dividimo-nos em dois, e dois em três, fechámos as outras cantinas. No carro do João espalhámos a palavra por Lisboa e o trânsito parou.
Do nosso manifesto surgiu algo que ninguém entendeu mas todos repetiram, como se sempre o tivessem debaixo da língua: “tudo isto se passará até ao sacrifício, a que cada um, por sua vez, será chamado”. Depois jurámos ao Sol que incandescia na bandeira negra dos estudantes. Jurámos aos náufragos do Universo ( quem eram, afinal?).
Ana, João, Marcelo, Júlio, Tó, Mabel, Cristina, o Godinho Poeta, a Armanda, Artur Pedro, Rui, Bulcão, João Xavier, Barata, Hugo, Lourenço, Zilhão e os outros todos, até tu, Marta, a vermelha e tu, César, o fascista que nos entendíamos todos a falar num banco poente da Avenida da Liberdade, porque o César, era um cavalheiro e a Marta, uma grande Mulher. Eu, apenas maravilhado.
E o sacrifício começou: o João, até que a filha foi encontrada sem sentidos num barranco ao pé da linha de combóio, depois de um divórcio horrível. O Marcelo, corrido da Faculdade, difamado pelos que o invejavam na Beira. O Rui, que se apresentaria aos Fuzileiros, depois de eu o ver, com o seu sorriso eterno, pondo um dedo à altura dos lábios “ André, ontem tinha merda até aqui” e, elevando o dedo acima da cabeça “Hoje, tenho até aqui! Estou-me a afogar, estou-me a afogar, André ..!”. E que depois vinha ao café e se encostava à parede, olhando a porta, falando pouco do seu caminho de soldado na guerra contra os traficantes de droga. E o Tó que, depois de aos dezoito anos, com apenas um ano de Direito, ter pegado num escritório de Solicitador que o pai abandonara, para sustentar a família e que acabou a vender produtos nas feiras, dizendo a verdade como um chicote e rindo como um céu de Verão. E tu, Ana, que pegaste na família inteira, devastada pela Droga, com o teu irmão a quem fui reconhecer o cadáver, que dás sustento hoje a dez famílias, numa profissão sem férias, sempre com o credo na bôca, a quem alguns homens partiram o coração porque não conseguiam senão partir-se todos contra o Taj-Mahal da tua Alma. Ou tu, João Xavier que começaste e recomeçaste a advogar dizendo sempre, “posso estar mal, mas sou milionário quando abraço as minhas filhitas à noite, antes de dormirem”. Ou tu Mabel que sempre trabalhaste enquanto estudavas, sem nunca perderes a tua honradez ou o teu sentido de família, furtando-te aos idiotas que queriam roubar o teu sorriso puro como o luar, depois anos a fio a bateres-te contra uma acusação, tu e os teus colegas, por causa dum Burocrata vigarista que fugiu com uns milhões para o Brasil. Ou tu Armanda que soubeste dizer ao Costa a miséria das misérias que é a Política e o largaste onde sempre ficou, só, enquanto tu e o Ruca construíam uma casita em pedra, em frente ao Mar, como ele fazia flores para os altares, ele que me ofereceu uma cunha ( e eu pedi - a Nossa Senhora - e ele disse-me a sorrir: ”É para já!”).
Ou tu Júlio, Leão da Serra, três vezes que o teu Povo te levou em ombros a Presidente da Câmara e que só te conseguiram apear, depois de te partirem dois casamentos e te difamarem com o que nunca conseguiram acusar-te até hoje e quando o médico te pôs um dedo no coração e te fez um ultimato ( mas mesmo assim não te mataram e tu voltaste a erguer um jardim...).
Ou tu, Artur Pedro, que era o melhor de todos nós, simples, humilde e sensível, que vieste da África do Sul, por amor à tua Pátria, que nem acabaste o curso, e a todos os teus companheiros do PSD, que se demitiram em Bloco dum cargo que lhes garantiria uma carreira, só porque, contra a direcção do Partido, o seu coração se inclinou por nós. Ou tu Pardal, que acabaste por herdar um castelo, quando a tua nobreza te deixava caído de bruços pelos bancos de Lisboa, desafiando tipos com o dobro do teu tamanho e que me oferecias a gravura que tinhas na cabeceira "o meu coração está triste até à morte", talvez esperando que eu te levaria esse fardo que ninguém sabia, para longe, e desistindo depressa porque sabias ser a tua Cruz. Mas que ainda eras capaz de dizer as coisas mais belas que uma mulher de Portugal alguma vez ouviu. Só porque o Amor é belo e alumia, mesmo quando é impossível. E tu Godinho, Gil, que nos ensinaste a todos "agora que escureceu e tudo ficou tão claro...".
E a ti, Luís Faria, que estudavas, trabalhavas e ajudavas todos, que apesar de seres de uma família prestigiada, soubeste pegar na tua irmã, depois dos desmandos dum pai tirânico e fugir, fugir, por essa Liberdade que tanto amavas. E que só conseguiste amealhar para comprar uma mota, aos trinta anos e sob ela morreste, no centro de Lisboa, quando conduzias correctamente, como sempre conduziste a tua alma, apesar do teu medo, apesar da tua correcção de outro mundo.
Era este o sacrifício, Camaradas. Lutámos pelo direito a uma vida privada, sim, mesmo quando não tínhamos nada, só carros em terceira mão e sótãos velhos em que todos tinham abrigo, e havia sempre um copito de vinho, quente como o coração de Jesus. A nossa vida privada de onde saltaram tantos “amigos” e “amantes” e até cocainómanos que quando puxaram do pó, foram pelas escadas abaixo, com um casco beirão marcado no cu. Uma vida privada humilde, remendada, combatida, por vezes obscura como um bote na tempestade, quase tragada pelas ondas.
Mas tudo valeu a pena. O ouro roçou-nos os lábios cerrados, as seduções despejaram o copo de água a um palmo dos nossos lábios ressequidos, fomos comprados e vendidos como escravos...mas nunca nos vendemos.
Oh, dança de Maio! Pudesses, Sol, brilhar um pouco mais para que o espantalho das sombras se anime, pudesses, dança de Maio desaguar em 10 de Junho!

6 comments:

P Amaral said...

Tentei seguir o link que tem as teses de Lutero mas não consegui nada. Tentei ir só ao site clickfriburgo.com.br mas também não consegui nada.
Pode corrigir isto?
Obrigado

P Amaral said...

Já recebi. Muito obrigado pela sua atenção e pela velocidade!
Irei ler as teses com muito interesse.

Anonymous said...

Caro André,
Arrepiante como tu consegues ser, quando te expressas por escrito ou pictoricamente.
Um abraço fraterno.
Duarte

Anonymous said...

Hi! Just want to say what a nice site. Bye, see you soon.
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Anonymous said...

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Saudações,

Ari Carstens