24.4.09

XVII (Re)leituras -- Diário da Alma, de João XXIII, por André Bandeira

Eis um livro que, como organização editorial, não é muito simpático. O diário que Angelo Roncalli manteve desde os seus catorze anos, não nos diz muito sobre o período da Segunda Guerra Mundial e, depois, tem um apêndice a especular sobre as origens aristocráticas deste bom Papa, que nasceu pobre, morreu pobre e foi sempre duma família pobre.
Mas o que é bom no livro, é que o que de espiritual lá está, salva tudo o resto. O Papa João XXIII, o do Concílio Vaticano II, teve muitos dias de sofrimento e de inspiração, teve muitos mesmo e pôde deixar-nos escrito o seu testemunho. Uma coisa que se aprende com o livro é que este Papa teve a enorme vitória de pecar muito pouco, graças a uma disciplina, graças ao Amor a essa imagem viva que chamava Jesus e Maria, contando talvez com uma família amorosa e solidária, que permaneceu pobre mas com Esperança.Penso que morreu em paz,tendo perservado essa herança de amor às pessoas, à sua família, à sua terra e a toda a Humanidade que considerava desde muito pequeno, como a coisa mais preciosa a perservar. Outro aspecto importante do livro é que nada desta sua proeza se conseguiu sem uma enorme força e dolorosas renúncias. Apesar de tudo, Deus parece ter-lhe dado a Graça de não ter sido muito tentado, de não ter caído em transes dum desalento infame ou de uma turbulência louca, como acontece até às vezes com alguns Santos. Foi um Papa suave, certamente muito dorido com trabalhos mas pouco assaltado pela dúvida. Do que nos ensina, resulta talvez mais clara a ideia de que quando temos a Graça de fazer o que devemos, a integridade do Bem é tão cósmica que esperar reconhecimento em vida, seria a mesma coisa que gravar um disco com os sons do Espaço ou tentar fazer montanhas russas movidas à velocidade da Luz, nas Feiras populares. Como aguentar esta desesperança de ser compreendido, não é fácil. João XXIII citava o Santo Cura de Ars, esse santo tão forte: quem diz mal de ti é teu amigo, quem diz bem, não é. Por fim recordo-me de uma coisa bonita deste Papa que foi diplomata de profissão, apesar de ter duas mudas de roupa: dizia que sofria muito na Grécia, onde as pessoas são tão belas e fascinantes mas adorava o povo turco, que nem era cristão e ficava às vezes a contemplar o Bósforo, onde os pescadores turcos juntavam os barcos de noite, com candeias, para pescarem atum em grande algazarra. Neste fogo nocturno, da Humanidade que se entreajuda, o solitário barrigudo, ficava a olhar sózinho, no intervalo dos trabalhos a que chamava repouso nocturno, com o seu sorriso de menino pobre italiano, que era demasiado tímido, ou gordo para participar na brincadeira, mas a quem os olhos se alumiavam com este milagre que é ter uma vez existido.

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