1.12.06

Esclarecer Camarate, por Escudeiro

Não conheço o percurso de José Esteves. Mas faz-me lembrar certas noites de Lisboa. O país tem de facto muitas e longas histórias por trás de cada rosto e tem regiões bem diferentes, apesar de ser um pequeno país. José Esteves é um branco mediterrânico, com aquela palidez que faz os africanos sentirem qualquer coisa de cadáver nos europeus e os africanos parecerem uma concentração excessiva de vida, que faz os europeus sentirem qualquer coisa de primitivo nos africanos. E, depois deste tropêço racista, cheio de ilustrações paradoxais em Portugal, uma certa uniformização do medo, faz, dum lado e de outro, todos parecerem-se iguais. Quando enfrentei povos orientais, que não tinham que bajular para me arrancar uma esmola, fiquei a saber que, só depois de muito tempo, é que eles não me confundiam com outro europeu qualquer, exactamente como eu, ao início, em relação a eles.
Ora é esta crueza mediterrânica que encontro em José Esteves. Um olhar de vítima e um beicinho terno que faz do rosto de José Esteves uma vítima do Fado. Compreendo agora, porque é que na noite de Lisboa, encarei com tanta gente que, antes de eu abrir a boca, espalhava imediatamente uma rede de trocadilhos, como se nada fosse a sério, como se o engano fosse obrigatório, enfim, como se eu fosse desde logo um inimigo. Invasor cruzado de Lisboa, via-me dentro do cêrco e percebia que a cividade submersa antes de todas as invasões, era mediterrânica e tinha códigos de entrada, como pertencer ao Partido Comunista e embargar a voz quando se falava de Cunhal, ou então ter pertencido a um mesmo batalhão da Guerra de África. Estas chaves garantiam uma série de coisas que me passavam por cima e por baixo. Por fora, tudo parecia igual e a conversa continuava na mesma. Quando este código se esgotava, ou não dava mais, o "branco" que estava à minha frente entrava sózinho numa pira funerária individual, com aqueles olhos de carneiro mal morto de José Esteves.
Acredito na história que contou sobre o seu papel no homicídio político mais determinante da história portuguesa dos últimos trinta anos. E acredito no arrependimento que a família lhe incutiu antes de confessar, tomando as devidas precauções para não pagar pelos verdadeiros mandantes.
Mas também compreendi porque é que José Esteves se converteu ao Islamismo: porque esta sensação de invadidos da urbe de Lisboa, pertencente a algo pre-islâmico, deve-lhe ter parecido que encontra a sua identidade mediterrânica no que mais antigo lhe ocorreu, ou seja, o Islão. Ser um "mouro" frio e grave, era a solução. Assim se conciliava a frieza assassina, com o calor da noite, com o perdão de Deus e , em tudo, sobrevivia a ironia saloia da Lisboa popular.
Ora este vício do sentimento, negro e cínico, sangrento e jovial, não é português, apesar de se encontrar em Portugal e não é justo que rodeie e influencie a maior parte das escolhas que se fazem na capital. Na verdade, é importante que se desembarace Portugal desta ironia lisboeta e que o sacrifício de Martim Moniz não seja o do "entalado" que se matou mas sim o do "inconformado" que forçou a porta.

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