4.7.05

Aromas de Xangai, por André Bandeira


Os aromas de Xangai

Fui a Xangai fazer uma Conferência a alguns estudantes na Universidade de Fudan, a mais velha da cidade que era capital do Mundo nos anos 30. Depois dei um salto a Pequim, onde vivi dois anos. Sou um tipo viajado. As viagens formam a juventude (ouvi eu, uma vez, dum peruca, num filme francês). Mas eu já não sou muito jovem e vejo tanta gente a viajar, com camisas de palmeiras que acho que “cantigas de malteses/ são como barcos no mar/ vão de um porto para outro/ com riscos de naufragar” ( adaptação mundialista de uma quadra de Fernando Pessoa). Vou ficando deformado pelo fuso horário e, quando voltei, vivi uma tarde de Verão, sem fim , pairando sobre a Sibéria, onde eram sempre três da tarde, com uma brisazinha abençoada. A Sibéria, no Verão, é verde, com bosquezinhos benfazejos. Nunca vi tantas disposições de azul e de flocos brancos de nuvens, como se o céu quisesse dizer qualquer coisa. Passei dez horas a contemplar o céu, enquanto os filmes todos que perdi no Cinema me passaram ao canto do olho. A turbulência foi grande, de Pequim até Irkutsk e as horas amargas deram-me lições de humildade e de Gratidão sem fim…
Passei pelo “Bund” e fui comer ao Hotel da Paz ( o heping fanguar) onde paguei 8 contos por um bife e um shuibi ( sprite) porque tive medo de me lançar logo nos pauzinhos e arriscar uma dor de barriga. Estava calor, cheio de água no ar, o Huangpu corria com aquele nome que me fazia lembrar a Academia militar de Wampoa onde Chiang Kai-Chek, de bota alta prussiana e Chue-En Lai, de brilhantina francesa , sonhavam fazer bem ou mal à China, até tomarem o freio nos dentes e fazerem mal a si próprios, mais a tudo o que se movesse em torno. Chu-en Lai, apesar de tudo, poupou muitas vidas. Por isso, quando o povo o foi enterrar, chorou-o sinceramente. Só ficou a “Pequena Garrafa” Deng que, ao querer que as respectivas cinzas fossem dispersas pelo Oceano, como Rock Hudson - que morria de Sida, ao mesmo tempo, do outro lado do Pacífico -mostrou ter salvo um pouco da sua alma, que escondia na Longa Marcha, com bebedeiras sem fim…
Suave, é linda a curva do Huangpu em frente ao Bund. Toda a gente vai lá ao fim da tarde. Toda a gente está lá de manhã a fazer Tai-chi ou a dançar. Foi bonito o sonho de pôr tanoeiros e metalúrgicos a dançarem o pasodoble sob a chuva tropical, na curva do rio. Tive em tempos uma amiga, filha duma chinesa refugiada que dizia que nunca poderia casar com um homem que não soubesse dançar. Em Zorba, o Grego, Anthony Quinn explica a Alan Bates que quando lhe morreu o filhinho, teve de dançar. É uma bela cena.
Agora vão milhares de pessoas para o Bund. Uma rapariga invectiva-me em bom inglês sobre quantas vezes estive em Xangai. O namorado olha-me como se o facto de eu não responder seja o mesmo, no Ocidente, que eu meter-me com a namorada de alguém, nas suas barbas. Respondo e minto, porque, ali, não ter ido pelo menos dez vezes a Xangai faz sentir qualquer um, parôlo. Ao lado, uma mulher interessante, discretamente vestida, olha o horizonte sem qualquer noção de pecado, deixando as saias esvoaçarem pandas ao vento sobre as pernas cruzadas, numa pose digna e segura como uma feminista do tempo de Sartre.
Os estudantes confundiram-me. Talvez deliberadamente. Quando citei o caso da antiga Primeira-Ministra da Suécia que teve de renunciar à chefia do Governo e do Partido porque se esqueceu de reembolsar um cartão de crédito oficial, no prazo, em doze contos de flores oferecidas a um Homem e chocolates comprados para os filhos, a única Doutorada, além do anfitrião ( mulher que me pareceu, de trabalho e leal) olhou-me com entusiasmo.
Os outros disseram-se neoconservadores. Excitados com os próximos programas, em Uppsala ou em Princeton, compararam o recuo sistémico do Poder em Pequim como um ‘neo-conservadorismo” chinês, cheio de heroísmo liberal e de moralismo civilizador mas sem os arrojos imperialistas de Kagan, Kaplan ou Perle. Admiravam a América, de um modo anódino, não pelo sistema, nem pela gente, mas por serem os que ainda fazem a vanguarda do Mundo. Um dia serão eles, um dia a China brilhará para todo o Mundo, mais atraíndo que dominando, mais seduzindo que conquistando. E se nunca será imperialista – crêem eles – é porque a China “ tem uma enorme vontade de se federar”.

Alto lá. Ora eu pensei que a China fosse um país. Um país que passava Taiwan, se estendia à Indonésia ( onde 80% da riqueza se concentra em 3% de chineses) chegava ao Havai onde Sun Yat-sen se exilou e se estendia aos americanos nativos, vindos pela ponte de Behring, que eram todos asiáticos. Mas não é. Aí suspeitei que me enganavam: “os Chineses querem-se federar” não porque estão a partir-se, como quis Lee Teng-Hui ou o induz o Dalai Lama, mas porque Taiwan e Pequim se têm que unir.

Isto não quer dizer que os estudantes estivessem inconscientes da fragilidade de barro que tem a China continental, ou a China “amarela”. Claro que o sabem mas estão ainda seduzidos pelos ‘ amanhãs que cantam”.Existe um materialismo, como uma insónia sem fim, uma comichão sem origem, que não tem rosto, nem Pátria, nem conteúdo. É apenas uma fogo-fátuo, uma estrêla que se persegue incessantemente. É como uma espécie de eterna juventude sem velhice grata, sem morte tranquila, é um quarto de tortura permanentemente iluminado. Mas que posso fazer? Afinal estes sonhos de Luz nem sempre são maus, mesmo quando políticos, quando quem os sonha não tem todo o Poder na mão. Podem dar às pessoas uma certa Esperança, por mais imberbe que seja.
O Professor olha para os dois convidados na minha mesa de honra. Ambos são dirigentes estudantis, uma rapariga e um rapaz. Não conhecem mutuamente as respectivas ideias. Subtilmente, ela diz-me que a estátua de Mao, à volta da qual se reúnem os estudantes graduados dizendo em pares aquilo que não foram capazes durante o ano inteiro ( isto é mais universal que o imperativo categórico!) tem a mão levantada: “ está a chamar um taxi”, diz ela. Certamente para sair dali, penso eu. E era isso que ela queria dizer.
O rapaz diz-me que o número de vítimas do Maoísmo foi superior a 70 milhões. Aí eu compreendo: a luta interna do comunismo chinês foi tão aventurosa, nem desafiante como a mais espantosa liberdade democrática. Aí, eu vejo claramente, a virtude da Democracia: não é por ser a menos má, mas por ser a sociedade política menos verdadeira, onde corre menos sangue.
O Professor diz-lhes: “Isso é bom, vocês serem dirigentes estudantis! É bom para chegar longe. Também o nosso conterrâneo Hu Jintao chegou alto!”
“ Sim”, diz-lhe o estudante” Mas Você, Professor, também foi!”
“ Ah, mas eu progredi profissionalmente. Não foi à conta da juventude!”
À noite, na Nanjinlu, a rua que levava das concessões estrangeiras, sem cães nem chineses, para a capital Nanquim, passeio por um cenário de Hong-Kong ( com 17 milhões de habitantes laboriosos, Xangai voltará a ser a capital do Mundo) enquanto Pudong exulta de néon. Vejo famílias de trabalho que gozam um pouco o seu bem-estar e estrangeiras loiras em esplanadas, ainda um pouco contraídas. Sou abordado por três prostitutos e três prostitutas. A última é uma rapariga com o ar educado por 5000 anos de civilização mas um corpo pequenino de rapariga que foi mal alimentada na infância. Agradeço-lhe delicadamente como se a uma estudante de boa família a distribuir volantes publicitários pela rua.
No comboio para Pequim, três velhos ( como serei em breve) falavam, como falam nos hutongs, com paixão e sabedoria, um californiano, um do Interior, um mais jovem, afinal, todos de Pequim.
Em Pequim, numa casa de banho de luxo, no Centro Lufthansa, um empregado dá-me toalhas para eu limpar as mãos no lavatório. O meu coração surpreende-se por ver aquele Homem da minha idade, várias horas por dia no ar húmido e obscuro de uma casa-de-banho, a fazer aquilo, na Pátria que quis libertar o Homem para sempre.
Volto em mente para o meu combóio, onde os três pequineses falam eternamente pela noite fora, sem nunca se desentenderem, sem nunca se magoarem. Adormeço ao lado, em paz, doce é o sono num combóio chinês, porque as árvores que passam ao lado são antigas.
Falo de noite, e choro, dilacerado pelos meus pesadelo ocidentais de guerras, ambicções e ressentimentos. De manhã, um dos velhos, que me ouviu, olha-me em silêncio com terna discrição.

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