11.1.06

História da Guerra Civil (Espanhola) que não vai agradar a ninguém”, de Eslava Galán. Por André Bandeira


Algumas frases seduzem pela sua simplicidade e são de tal modo perspicazes que se antepõem aos sentidos. Uma delas é a máxima da Fé Ba´hai: todas as guerras são civis porque todos os Homens são irmãos.
Também é interessante a frase de Lartéguy: todo o Homem é uma Guerra civil.
Em Espanha saiu, no Natal, a “História da Guerra Civil que não vai agradar a ninguém”, de Eslava Galán, filósofo e romancista (com novelas sobre a Guerra Civil) de Jaén, cidade que foi inexplicavelmente martirizada por Franco.

O seu livro, com maneiras, é fundamentalmente, um anedotário de esquerda que tem a nobre intenção de tentar à sua maneira ultrapassar o trauma. O livro tem muitos capítulos muito curtos que se lêem como um jornal, tem sobretudo histórias humanas e uma delas serve de narrador a todo o enredo. Vejamos:

1- Até ao fim da Guerra (incluídas as execuções feitas pelo vencedor até 1944) o número de mortos não é de um milhão, mas cerca de meio milhão. Os republicanos mataram mais gente mas, quando, perderam, Franco ultrapassou-os.
2- Alguém atravessa as duas Espanhas, onde se saúda, à romana ou de punho erguido, e diz, antes de sair:” Só voltarei quando se voltar a cumprimentar, tirando-se o chapéu”
3- No lado republicano, alguns são arrebanhados para morrer. Diz um:” eles não me vão fuzilar porque o comandante foi empregado no meu casino e eu dava-lhe boas gorjetas”. O comandante entra e dá ordens: “Fuzilá-los a todos e este em primeiro lugar!” Diz um outro: “ eu ao menos não tenho inimigos que nunca fiz favores a ninguém!”. Morrem ambos.
4- Durruti e José António. Durruti morre na frente de Madrid insultando os seus homens que fogem da frente (leva um tiro no peito, de pequena distância, deixa em herança apenas uma muda de roupa, uns óculos de míope e um pedido ao Comité da CNT de cem pesetas para gastos pessoais), José António Primo de Rivera é fuzilado duas horas depois, na Prisão de Alicante, sem que haja qualquer relação entre as mortes (os que guardavam o líder da Falange só podiam festejar a morte do líder anarquista e nem dela sabiam). Durruti não aceitava que seus companheiros, como anarquistas que eram, fizessem parte do Governo. José António parece nunca ter sido objecto de uma tentativa séria de resgate (que as houve e muitas) do lado nacional. Destinos semelhantes de um Asturiano e de um Andaluz.
5- Tinker é o mais brilhante dos mercenários republicanos. Piloto americano dum “Chato” soviético estava-se para alistar no lado nacionalista quando viu a resistência do Alcazar de Toledo. Entretanto Franco bombardeia barbaramente Madrid e alista-se pelos Republicanos. Deita quarenta aviões abaixo, recebe uma medalha, vai comprar o que se propusera antes de se alistar, uma casa aos EUA, desce o Mississipi a remos só com o seu cão e aluga um quarto numa pensão. Passa um dia inteiro a ver antigos recortes de jornais espanhóis, outros “souvenirs” senta-se em frente à janela e dispara no peito. Coração grande, alvo fácil.
6- O capitão Cortés resiste às hordas republicanas em Virgen de la Cabeza, com oitocentas pessoas entre militares e famílias. Faminto, abre processo por cada arma que se encrava, como num quartel em paz. Os que desertam com as crianças nos braços, dizem aos milicianos, arriscando a vida: “ Não, não direi mal do Capitão. É o homem mais justo que alguma vez conheci. Deserto pelo meu filho.” Cortés cai finalmente crivado de balas, com os seus nacionais à vista. A sua fotografia no leito de morte, não precisa de ser retocada como a da Benetton para se parecer com a imagem de Jesus.
7- Garcia Lorca é arrancado da casa dos Rosales, falangistas da primeira hora que lutam por o esconder: quando sabe que vai morrer, faz apenas uma tentativa para o evitar: “ Não me mateis que eu creio em Nossa Senhora”. Desgraçado de quem não o ouviu...
8- O diálogo entre Miguel de Unamuno e Milan Astray, o fundador da Legião, é reproduzido ipsis verbis. Todos o conhecem. Astray diz “Viva la Muerte!”, Unamuno, “vencereis porque tendes a força bruta do vosso lado!”. Unamuno morre pouco depois, com um derrame cerebral. Milan Astray, que tentara em vão dissolver o casamento empatado por um voto de castidade mais uma solidadriedade conjugal ímpar, tem uma filha duma belíssima jovem, com metade da idade dele e que lha confia. Vive ainda muito tempo, uma vida de paz, em Lisboa.
9- No Cárcere e hospital de Madrid, os republicanos vão arrancando feridos e prisioneiros, levam-nos para uns “paseos” e matam às centenas todos os dias. Um anarquista assume o comando. É um antigo toureiro, com um passado de fome e miséria a quem uma cornada encurtou a carreira. No dia em que entra, os “paseos” cessam definitivamente. Chamam-lhe o “anjo vermelho”, ele que era vermelho e negro, como a arena e o touro.
10- Um desertor republicano passa-se para os nacionalistas. Chama-se José Pujol, bate-se denodadamente pelo novo partido. Durante a segunda guerra, sob o nome de “Garbo”, será um dos maiores espiões dos Aliados, entre os alemães.
11- Mussolini e Hitler predizem sinceramente o pior para Franco. Acertam pior em relação a si mesmos. É certo que todos os concorrentes morrem (Sanjurjo, Goded, Mola). Só Mola deixa dúvidas, encontrado a cinquenta metros do avião que se despenhara, corpo intacto caído de costas, com a máquina fotográfica ao peito.
12- Um padre catalão sai da cave onde durante três anos celebrou missa clandestinamente. Vai à Igreja e diz:” Caríssimos irmãos: onde pusemos a cabeça? Metade de nós morreram na frente ou foram assassinados, os campos estão por cultivar, os animais foram roubados e eu, eu...tenho de vos dizer a Missa em castelhano!”.

Esta “Guerra de Espanha” é mais uma a juntar às clássicas de Dahms ou Preston, mas ainda com alguma distância. Tem bons números em anexo. Traduz alguma ambivalência, desta vez vinda da esquerda. Dá um ideia geral de que as duas Espanhas eram acriançadas, passando a uma velocidade de mercúrio da irresponsabilidade para o sanguinário. Mas fica claro que, enquanto os espanhóis morriam de faca nos dentes, no pó e na lama, o melhor arsenal da época, alemão/italiano ou soviético/francês, triunfava no céu, no mar e na estrada. Na ambivalência, os espanhóis, deixados a si mesmos, ter-se-iam talvez entendido.
É bom que se mantenham estas ambivalências e se aprenda a viver com elas.

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