13.1.06

Sud-Express, por André Bandeira


Vou no combóio. Parei num lugar há vinte anos, ou mais. Dormi noutras gares, tive amores, casei-me, tive uma filha, ela cresceu. Voltei a tomar o combóio muitos anos depois. Aqui vou eu, pouca-terra, pouca-terra...
O Sud está melhor por fora. São mais simpáticos os franceses que “transferiam o gado” do trem hispano-português (agora) para o TGV, em Irún. Ou Hendaye (não sei onde fica um e onde fica o outro, são Castor e Pollux, irmãos unidos e fiéis, à ida ou ao regresso, passam um rio a vau para se substituírem). Só não abrem o combóio, apesar do frio, enquanto não soa uma voz trilingue, gravada às tiras.
Por dentro, o Sud está melhor. Em vez de garrafões e sacos de plástico com litros de caldo verde, há geleiras com cores giras.
Mas o meu Povo, ali vai, patibular. Ena pá 2000! Não queria ser preto, pelo menos ao primeiro encontro, se este trem fosse num outro sentido, colonizar o Burundi.
Aqui vai o Sr. Miranda e a sua mulher que lê “O Crime” com o lábio luzente. Mas o marido diz-lhe que os jornalistas têm é de vender papel. À noite entro no compartimento. As luzes da linha férrea iluminam compassadamente os rostos adormecidos em sonos descoroçoados. Este será também o meu rosto num jazigo com várias prateleiras. Lá fora, jovens de camisolas de Verão sem mangas, trocam os olhares de quem tem os braços nus à venda no mercado. Passam latas de “Sagres” de mão em mão. Há alguns jovens com um aspecto mais “night life”de Lisboa. De crânios rapados, com lenços blasés à volta do pescoço e blusões de design. Mas não têm trabalho em Portugal, devem-no ter duro à volta de Paris, acabou-se o Natal, vão passando dos ares durões da luz negra de Lisboa para um solar sorriso mais meridional, mais fraterno. Ser tuga em terra de rico, sem o orgulho do árabe, tem mesmo que se sorrir como os cãozitos que baixam a cabeça e abanam a cauda. A vida não está para brincadeiras.
Alguns têm um ar assustado. Mesmo o pobre tem mãe, mesmo o pobre tem algo a perder. E a memória da Serra, mesmo a quem foi chamado de bruto até se convencer disso, mais o sonho fugidio duma rapariguita de tranças loiras a sorrir pela alcongosta verde, faz o calhau orvalhar-se de lágrimas. Devem ir ao negro para um trabalho de fortuna. Há que ser rijo, gente minha, também eu estive aí. Não sabemos para onde vamos. Há hoje senhores de escravos nas grandes metrópoles, tarados de coiro negro em noites de muito frio, amigos fiéis do terceiro imperial.
Encontro um lugar pacífico. Um português de Moçambique fala delicadamente com um cabo-verdiano e podemos imaginar pela janela, tão húmida de sombras, uma fazenda de Moçambique, verde, verde, pelo pôr-do-sol dentro.
Falamos de Deus e de mistérios. Falamos de pessoas com dons, de familiares que adivinham o futuro, que falam do depois da Morte onde molharam os pés. Separamo-nos cuidadosamente das crendices, o moçambicano dos best-seller americanos, o cabo-verdiano, das bruxarias.
Tenho uma doce e calorosa sensação. Este combóio vem de África como uma grande jibóia por baixo da terra e leva-nos às costas. Aí vamos nós pela Europa dentro. Pouca terra, pouca terra. Muito mar...
Ah, sim. Esta é a minha Pátria muito amada, das cinco chagas do mundo, peças do meu rosário que contarei talvez, de Mombaça à Gorongosa, nas mãos da minha gente cor de minério, que não fica bem em nenhum anel...

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