31.1.06

Tem a palavra o sr. Deputado Barrilaro Ruas!


II Legislatura - 1981-02-03

O Sr. Barrilaro Ruas (PPM): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Noventa anos depois da revolução do 31 de Janeiro, julga o PPM que é tempo de tentar esclarecer o exacto significado histórico e político desse movimento. E o único modo de o fazer é renunciar aos pontos de vista ideológicos, substituindo-os pela perspectiva nacional. Por uma coincidência que se diria preparada, o dia da revolta militar do Porto é imediatamente seguido, no calendário, pela data do regicídio. E algum reflexo deste crime sobre o acto romântico que anunciou a República vem ajudar o historiador no esforço de interpretação.
Vem de longe o respeito dos monárquicos mais conscientes pelos homens que fizeram o 31 de Janeiro, ou que o prepararam no campo das ideias. Um dos livros mais famosos de António Sardinha presta homenagem ao patriotismo e à isenção desse punhado de revoltados e vê neles o propósito de fazer da política alguma coisa mais que o serviço de interesses ou a ridícula fachada de convenções sem conteúdo: vê neles o novo arranque nacional para uma obra concreta de amor fecundo pelas comunidades, o apelo às raízes, a entrega ao bem geral. E é inegável essa faceta da revolta do Porto. A envolvê-la, dando-lhe o ardor e o fogo das grandes horas colectivas, havia o sentimento da honra ferida. Para o homem comum, o 31 de Janeiro foi o gesto heróico de um povo que acabava de sofrer o insulto e o esbulho por parte de uma das duas superpotências da época. Neste ponto, porém, importa recordar que também nos arraiais da monarquia houve o mesmo sobressalto de indignação patriótica, a começar pelo rei, que logo devolveu à rainha Vitória de Inglaterra as condecorações com que o agraciara. Ainda hoje, porém, sobressai naturalmente na história desses meses e anos dramáticos o protesto -tanto mais forte quanto mais alimentado por motivos partidários - que, por toda a parte deu cor republicana ao patriotismo magoado.
"Republicana"? Ou antes socialista? O maior nome que subscreveu e adensou o protesto, dando-lhe forma a um tempo racional e épica, foi o de Antero de Quental, com quem entrava no País, em ritmo de perfeita arte (de pensar, de escrever, de viver), o socialismo de Proudhon. Em Antero, a República era mais uma fórmula que uma convicção, mais uma roupagem que um regímen.

E, quanto ao "patriotismo magoado"... Como não lembrar que os ideólogos do 31 de Janeiro se batiam (na esteira de alguns vintistas e, sobretudo, de Félix Henriques Nogueira) pelo mais declarado liberismo?
Esse liberismo, no entanto, nascia -para esses homens- da mesma fonte que o patriotismo. As reminiscências clássicas e o culto romântico pelas estruturas tradicionais levavam os investigadores da Portugália à afirmação de valores comunitários que antecediam a zona histórica em que as fronteiras se tinham fixado dentro da Península e as dinastias nacionais começaram a desempenhar o seu papel de símbolos. Assim, o patriotismo dos revolucionários do 31 de Janeiro fazia curto-circuito: porque, sobrevoando séculos e milénios, reunia num só amor essas antiquíssimas raízes e o sentido imperial da Lusitânia desembarcada em África. Não nos escandalizemos ao ver boa gente portuguesa -daquela que a história de sete ou oito séculos ensinara a ser portuguesa - estremecer de horror diante da miragem do federalismo ibérico, que fazia as delícias (e o martírio) de um Antero de Quental, de um Oliveira Martins, de um Teófilo Braga, de um Basílio Teles, de um Anselmo Braamcamp Freire.
E houve momentos em que o conflito dos dois patriotismos - o que se revia na Restauração do 1.º de Dezembro, e o que a repudiava - se tornou sangrento e fratricida. Sucessivamente, o 31 de Janeiro de 1891, o 1.º de Fevereiro de 1908 e o 5 de Outubro e 1910 provaram a força das ideias e que essas ideias, quando se transformam em ideologias, são inimigas das pátrias e dos homens.
O Sr. Borges de Carvalho (PPM): - Muito bem!
O Orador: - O ideal que desencadeou as duas revoluções: - e que, na sua forma degradada, mofou D. Carlos e D. Luís Filipe - tinha, certamente, uma face pura: aquela em .que se reflectia o amor autêntico das pessoas e das comunidades, o apego às liberdades municipais e também o espírito crítico e o sentimento da indignação e da revolta sem o qual o homem é um ser incompleto. Mas, passados noventa anos sobre o 31 de Janeiro, setenta e três sobre o regicídio e setenta sobre a implantação da República, parece legítimo reconhecer que esse ideal se deixou contaminar pelo vírus totalitário do absolutismo ideológico e impediu os políticos responsáveis de encarar com lucidez as realidades nacionais.

É hoje evidente - como o era já em qualquer desses anos relativamente próximos, de que todos ainda sofremos- que a Nação Portuguesa sofria de gravíssima doença moral e política, que é possível descrever, aproximadamente, como crise de identidade, crise de valores comuns, crise nas relações do Poder com o povo-crise, portanto, de representatividade das instituições. Mas, perante essa crise dissolvente, os políticos precipitaram-se no diagnóstico mais fácil. A instituição das instituições, o fulcro da história política, era certamente a dinastia, era o rei, na sua imagem constitucional e, sobretudo, na imagem tradicional que ainda vivia na alma do povo. Pois bem: o remédio de tantos males estava afinal à mão do primeiro revoltado... Ninguém pode negar que o regicídio foi preparado longamente, pacientemente preparado, em mil campanhas de imprensa, escrita e desenhada, discursos de comício ou do Parlamento, até poemas de líricos da moda.
E, para tantos males de que sofria o povo, o remédio não veio da revolta vencida, nem do crime afinal impune, nem da revolução acidentalmente vitoriosa. O remédio está ainda para vir. Porque não é bastante a estrutura democrática que a Constituição nos assegura, enquanto não houver uma instituição que, sendo a mais popular de todas, seja simultaneamente a menos dependente do critério volúvel dos interesses, ou das ideologias.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Talvez seja para bem de todos os portugueses a lição a tirar destas datas históricas. O PPM quer, em qualquer caso, deixar bem expressa e nítida uma palavra de homenagem àqueles que, no 31 de Janeiro, se sacrificaram a um ideal e àqueles que, carregados de história, caíram, no Terreiro do Paço, vítimas de uma audácia assassina - e também de um diagnóstico profundamente errado.

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