26.12.10

IN MEMORIAM - Manuel Ivo Cruz

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IN MEMORIAM - Manuel Ivo Cruz - Risco Contínuo
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Hoje, dia de Natal um amigo partiu. Conhecia-o há mais de 30 anos. Ultimamente apenas sabia notícias suas pelo telefone ou através de pessoas amigas. Data do passado dia 5 de Outubro a sua última aparição pública nos Paços do Concelho de Guimarães.

1.12.10

Primeiro de Dezembro

Patria Mare

Haverá um Céu onde as Pátrias vão
Quando, velhinhas e cansadas, não
Retêm mais as águas e, sorridentes,
Fecham os olhos e a boca sem dentes?

Haverá nestas águas libertadas
De Oceanos, ilhas e enseadas
Um rumor de águas calmas, afinal
Que lave as feridas de Portugal?

Tudo é verdade, tudo está certo,
Nada tem forma, tudo é assim.
O cadáver jogado ao Mar aberto

Como um destroço, voga mansinho.
Nas águas calmas, do mar sem fim,
É ele ainda que indica o caminho.

21.11.10

LIX - (Re) Leituras - A Escrita da Finitude, organização de Lélia Parreira Duarte, por André Bandeira

Esta colectânea de vinte autores foi-me oferecida pela organizadora, Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E foi no contexto de um colóquio sobre a Morte, com a presença dos sociólogos Michel Manffesoli e Moisés Martins. A morte não está na moda, mas está aí.Um shintoísta ou um budista tibetano sabem que dá sorte contemplar esqueletos ou ter mesas feitas com ossos. Quanto mais se contempla a morte, mais a vida se levanta da cama desalinhada da nossa mente e vai à vida. Mas quando a vida começa a ser mais recheada de «bem-estar» (ponho entre aspas porque os autores escolhidos, como Lobo Antunes, Autran Dourado, ou Jorge de Sena, não demonstram bem-estar nenhum) então tem-se que cuidar dos moribundos, dos velhos e dos aposentados que não querem morrer, siderados que estão no Bem-estar. Sobre a Morte, já se disse muito. Sobre a desgraça e a aflição diz-se pouco, porque não vendem nada e esta literatura da morte instila um certo bem-estar (os autores têm prazer a escrever sobre uma tema tão digno). Mas, em Política, eu tenho de dizer qualquer coisa: os anos sessenta deram o poder, no Ocidente, a muitos adolescentes que não saíram da adolescência. Talvez os adolescentes no Poder sejam aqueles que abrem as portas da cidade, aos bárbaros.E Santo Expedito, vestido de legionário romano, diz-nos com a cruz bem levantda na mão: «Hodie!», ou seja «É hoje!». As Esquerdas -- como estes textos, sobre a Morte, uma mistura de vidas introspectivas ou egocêntricas -- são uma série de Direitas mal realizadas. Ora a Vida -- dizia Bichat, o médico francês -- é o conjunto das forças todas que resistem à Morte, desde um copo de cachaça a uma Oração.Pois só me resta dizer algo contra esta -- muito bem organizada e refinada -- colectânea da indústria da Morte:quando se inventa um reino do outro lado do espelho, ou suspenso no vazio do precipício, esquece-se a hora que passa, cheia de minutos para preencher. Eu sei que é apenas Fé, mas é melhor uma Fé para juntar os ossos desconjuntados dos nossos sentidos, uma Fé ainda como acto de Vida e dizer aquilo que dizia o Evangelho: Oh Morte, onde está o teu Poder?!

14.11.10

LVIII (Re)leituras - Jean Monlevade, de Jairo Martins de Souza, por André Bandeira

Eis aqui um bom exemplo de literatura regional. Um município de 80.000 almas, perto de Belo Horizonte, tem o nome de um dos primeiros alunos da Escola Politécnica de Paris, que fundou a cidade: Jean Monlevade. Numa prosa cuidadosa e com um subliminar sentido de humor, o autor faz a arqueologia, direi, industrial, deste município brasileiro associado à siderurgia. Minas Gerais tem hoje uma das maiores taxas anuais de crescimento do Mundo e esse facto deve-se, também, à exportação do minério de ferro.Por isso mesmo, o romance, bem construído (talvez com pouca definição das personagens secundárias), faz uma arqueologia do futuro. Em termos científicos (que, devido à formação do autor, são também da História das Ciências)o livro permitiu-me constatar que há uma arqueologia industrial de futuros antigos, no interior do Brasil. Em termos morais, isso faz o autor achar engraçados alguns pormenores dum quotidiano, nomeadamente português, do passado do Brasil, que facilmente podem levar aquele, nadando no meio da corrente espessa da narrativa, a enfurecer-se com o seu próprio passado. É que um passado, que é apenas um futuro, e uma ideia de futuro, não é apenas um passado. É uma ideia que se revolta por não nascer. Mas o passado do Brasil é muito mais um ridículo D. João VI, desembarcando no Rio, com a mulher e a filha, piolhosas, do que um aluno do Politécnico de Paris, investido pessoalmente por Napoleão. No rei barrigudo português há já muito daquele passado mediterrânico e africano que foi construindo o Brasil, apesar de não ter a disciplina e a auto-flagelação de um sistema franco, comandado por um corso sem escrúpulos. Não nego a pluralidade das origens europeias que formaram o Brasil. Prefiro, contudo, pensar num Jean de Monlevade que fugia duma Europa, talada pela violência, pela purga e pela traição, e que pensava encontrar no Brasil uma harmonia entre a Razão e os seus bosques franceses do Antigo Regime, então fuzilados e guilhotinados pela modernidade. Veja-se a gravura da capa. O Porvir, ao contrário do Futuro, é uma mistura surpreendente do Passado e do Fututo.

4.11.10

LVII - Eta Mineiro...Jeito de Ser, de Olavo Romano, por André Bandeira

Este livro, do académico mineiro Olavo Romano, é uma chuva de Verão, em sentido de humor e perspicácia. O autor, tendo nascido em Morro de Ferro, no então remoto distrito de Oliveira, em Minas Gerais, trouxe consigo o tesouro da fala e da inteligência do Povo que o viu nascer. Os  sessenta e seis textos são todos sábios e reais, sem excepção, mas o meu preferido é «O Elogio». Que os tropeções da reconversão do Português de Portugal, para o Português do Brasil, me vacinem contra fazer um discurso público, assim, algum dia. Mas pode ser que aconteça (espero bem que não). Este tipo de literatura, como a que Olavo Romano nos apresenta nesta colectânea de textos de outros volumes da  sua Obra, têm o dom de nos ensinar e de nos divertir, chegando mesmo a dar-nos a sensação que o Mundo pode ser um lugar maravilhoso e que a Lógica e a Inteligência, correndo sempre duma fonte inesgotável, não se detêm em lado nenhum, aflorando quando menos se espera. Os textos fazem-me lembrar aquilo que Madonna, a cantora Rock, procurava quando lhe deu a fase, entre dois namorados novos e mais um programa de ginástica radical, de se virar para estudar a Cabala. No enxurro jornalístico que então expediu, disse-se que os cabalistas estudavam então qual é o cimento que une toda a Humanidade. Compreende-se que, numa saudável divulgação de que há homens que insistem em estudos místicos (o que não foi saudável foi divulgar-se isso, só porque a Madonna decidiu), se divulga também que há quem procure a salvação em algo específico da Humanidade. Pois estes 66 textos de Olavo Romano filtram esse cimento que nos une a todos. E não pude deixar de pensar num escritor muito interessante, português, António Cagica Rapaz, nome bem de Pescador, da antiquíssima vila de Sesimbra, trinta Kms ao sul de Lisboa, o qual escreveu um livro muito semelhante referindo-se à sua terra: 90 e tal Contos. Tive uma enorme dor quando o António nos abandonou, ano passado, sem a divulgação que merecia, fulminado por um tumor que não merecia, nem ninguém esperava. Mas tudo isto me lembrou que este estilo de escrever, de quem dá testemunho, até vindo de escritores pouco divulgados como foi o caso do Cagica Rapaz, entre outras coisas, fazem uma ponte comprida entre os Pescadores de Sesimbra e os Lavradores de Minas Gerais.

3.11.10

LVI - Chico Rei, de Agripa Vasconcelos, por André Bandeira

Este livro dos anos sessenta, representa muito da revolta do Brasil, na busca da sua identidade, sobretudo numa época em que o Brasil estava à mercê da identidade protestante e altiva dos EUA. Hoje, o Brasil tem um metalúrgico como Presidente, elegeu uma mulher para lhe suceder, e os EUA são presididos por um homem de origem africana com o nome de Barack Hussein. Todos estes factos, por si, são, a meu ver, positivos, mas o que se desdobra deles é muito mais complexo. O livro relata como um príncepe congolês, Galanga, foi feito escravo pelos seus inimigos, no meio do séc.XVIII, vendido aos negreiros portugueses e acabou escravo em Minas Gerais, com seu filho. Mas não acabou aqui. Estava só para começar. Galanga, baptizado Francisco da Natividade, foi libertado por um padre, adquiriu terra a um preço simbólico do seu antigo proprietário e trabalhou de sol a sol para libertar mais de 200 dos seus companheiros de tragédia. O Governador português, sem invocar outra Lei que a do senso político e humano, permitiu que ele se tornasse Rei da sua nação congolesa, dentro da capitania portuguesa de Minas Gerais. E recebeu a coroa do pároco local. É que a população africana não aceitou sempre o jugo da escravatura, neste lugar do Império português. Combateu-a, fugiu, revoltou-se, sustentou verdadeiros reinos dentro do mato, como o de Zumbi dos Palmares, no interior de S.Paulo, e ainda hoje mantém unidades agrícolas autónomas que se impõem ao Estado, os quilombos. Xico Rei não fez um quilombo no meio dos outros que o desprezavam. Fez um Reino. Reinou porque a sua humildade, a paz que irradiava da sua maneira de ser, punham os outros todos em respeito. Reinava pelo coração, o qual se moldara na violência hierárquica, da tardia Idade Média da África sub-saahriana, no Holocausto da escravatura negra, na primitividade da alma humana. Mais que pelo Poder, a sua autoridade era legítima porque se baseava em algo anterior a ele, que o escolhera para reinar e o seu reinado evitou muito derramamento de sangue. A população negra era mais que o dobro da população branca ou mestiça, juntas, de Minas Gerais, e, por várias vezes, esteve para se levantar e cortar a vertigem diabólica duma economia baseada no ouro. Um Governador esteve para o açoitar em praça pública, já velho e doente, porque Xico-Rei não se conseguiu levantar à sua passagem. O médico português Timóteo pôs o Governador em respeito, lembrando-lhe que nem um escravo podia ser açoitado se estivesse doente, quanto mais um cidadão livre! O primeiro açoite teria significado o massacre dos portugueses de Ouro Prêto, naquela mesma tarde. Xico-Rei morreu muito depois, revivendo em delírio na batalha de Marmara, em que, muitos anos antes cavara o caminho da sua própria escravatura, por intervir contra um chefe ilegítimo o qual tomara o poder pela violência. E aqui me ficaram duas imagens deste romance histórico: um Rei que se levantou da escravatura pela sua humildade e constância e um Governador autoritário e autista que, felizmente, foi detido a tempo por um médico, antes de deitar tudo a perder.

26.10.10

LV - (Re)Leituras: A Queda, de Albert Camus e A Noite, de Élie Wiesel, por André Bandeira

Este livro de Albert Camus, de 1956, que interesse tem para hoje, no tempo diáfano da blogosfera? Camus é mórbido, desconectado, disfásico e morrerá num acidente de automóvel quatro anos depois. Eu respondo: o que interessa neste livro, hoje, é mais que uma coincidência. A Europa está a cair depois de ter comprado várias almas a troco dum Bem-estar que, afinal, era todo crédito vazio dos Bancos. O livro «A Queda» fala num produto luxuoso da Guerra Fria, o advogado parisiense Jean-Baptiste Clamence, cujo nome é um grito («Clemência, S.João Baptista!»), o qual ganhou a vida a defender os fracos mas não foi capaz de acorrer a uma pobre mulher que se ia atirar de uma ponte de Paris, numa noite fria. Ficou, claro, para sempre amaldiçoado por si próprio, «julgado, todos os dias, sem lei», até ele próprio se suicidar, numa ponte de Amesterdão. Pergunto: vamos todos deixar as pessoas aproximarem-se da ponte, crivadas de dívidas e exaustas, depois de lhes termos arrancado a alma (nem a comprámos, sequer) com estímulos diários de prazer físico, a que chamámos Democracia? Ou vamos acreditar que Deus existe em nós e na moça insignificante à beira da ponte, um Deus de Amor, que não advoga bem, que se não sabe defender nos tribunais, que não tem lógica nem calendário, e que não pertence certamente ao feixe de estímulos físicos a que chamamos Democracia? Em «A Noite», descrição testemunhal de Auschwitz, por Élie Wiesel, Nobel de 1986, um relato que tem alguns subjectivismos facilmente explorados pelos negacionistas do Holocausto (os quais não se combatem decretando como crime o seu direito à liberdade de expressão), Deus morre numa criança que é enforcada.Com Camus, Deus é tão surdo que não existe. Num livro, Deus é morto pelos nazis, no outro, Deus asfixia-nos pela Sua ausência e, além da Sua ausência, só existe Inferno. Porquê? Porque não fomos capazes de ser a cápsula dos mineiros, à beira das pontes onde a Europa se suicidou, Monarquia insignificante, transida de frio, sem respeito nem carinho que devíamos ter para com o Passado, o qual vota, quer queiramos quer não, e o seu voto não é democrático. É tempo de um Socialismo liberal, liberal como a promessa que o fascista Mussolini não conseguiu cumprir, socialista como o Comunismo nos mentiu continuamente. E, por cima de tudo, um Rei. Para que, à beira da ponte, na noite escura, uma cabeça dourada nos encare iluminando os vãos escuros que não queremos ver. Uma cabeça um pouco maior que o tamanho natural. Como o Passado que se agiganta de cada vez que fugimos dele e que está lá, na cidade nocturna, para nos guiar, não para nos assombrar. Porque só nós, com a nossa violência e o nosso egoísmo, com a nossa animalidade, é que nos assombramos.

5.8.10

LIV - (Re)leituras: De la Démocratie en Amérique, de Alexis de Tocqueville, por André Bandeira

Eis uma edição de 1951, data da 4ª República francesa em que os comunistas e os gaullistas constituíam a esmagadora maioria da França, num projecto anti-americano, na Europa. Esta edição, cuidadosamente comentada por André Gain, revela o que havia de profético no aristocrata francês Alexis, que fora, em 1831, para o EUA, estudar o sistema penitenciário americano e voltara sendo o maior perito europeu, sobre os EUA. Tocqueville é um amigo da Democracia e termina o livro com uma conclusão brilhante: os climas e os acidentes históricos moldam as Nações, mas o que conta é sobretudo o que os Povos fazem do seu património histórico.
Tocqueville tivera o realismo, mas também a coragem, de abraçar a Democracia, face à Aristocracia, mas não abdicara de considerar a importância das diferenças do Género humano, sem o respeito das quais não há Liberdade, pois nada há a libertar (e a Liberdade é algo concreto). Profeta do que seriam o Fascismo, o Comunismo e as ditaduras mistas de ambos, chamadas «latino-americanas», mesmo quando acontecem na Europa ou na Ásia, Tocqueville antecipa o caminho para a servidão empreendido pela Democracia totalitária (o que é bom é aquilo que a maioria acha). Mas qual é a origem do «aristocratismo em vias de se tornar democrata» de Tocqueville? Primeiro, é o particularismo francês, em que as diferenças sociais tinham resistido contra um Soberano todo-poderoso. Tocqueville é, portanto, contra o absolutismo. Mas será Tocquevilie um monárquico liberal, ou seja, um republicano adiado? Tocquevile, a certo ponto, diz que o futuro temível é uma República monárquica na sua administração ou seja, cheia de pequenos reizinhos burocráticos e desprovida de particulares que resistem ao Poder central, pelo sua legitimidade e vitalidade. Pois parece que as sociedades evoluem, mesmo no modo como manuseiam a sua realidade política,mas o aristocratismo francês -- que fora sujeito a tantos banhos de sangue -- é sêco e materialista.O aristocratismo francês tornara-se republicano, não por ódio ao Antigo Regime, mas por trauma do Absolutismo Esclarecido. Há um descarnamento e uma crueldade na racionalidade francesa, mesmo quando cultiva as virtudes de uma certa aristocracia (Tocqueville propõe a possibilidade de uma aristocracia gerada pela Democracia). Do optimismo desesperado de Condorcet, à Fé de Maistre, ao cinismo de Maurras, há uma convulsão enorme. Talvez o aristocratismo francês tivesse o descarnamento próprio dos romanos, sózinhos na fronteira face aos hunos, depois de Roma cair. Antes do ditatorial Lutero se revoltar contra os diabólicos vaticanos da altura, já os franceses tinham uma secura que nada era de aristocracia, mas apenas de arcaísmo vingativo, e bárbarao, mesmo que o barbarismo o fosse ao modo dos troianos e etruscos, fundadores da Roma antiga: uma espécie de desprezo pelo Género Humano. Ora uma aristocracia assim, é anti-monárquica, embora não seja ainda democrática. É realista, sem ser Real. A vantagem de uma monarquia pode ser a mesma de uma República, com a vantagem de que a primeira é uma muito mais sábia das tradições históricas de uma Nação.Talvez a Monarquia funde muito mais fundo, as raízes tão diferentes de querermos viver em comum, a qual nunca é uma forma comum de viver, como nada na nossa vida pode ser banal e indiferente, uma vez que só vivemos uma vez. Talvez para a Eternidade.

3.8.10

LIII - (Re)leituras: Introdução à Antropologia Cultural, de Mischa Titiev, por André Bandeira

Um clássico de 66. O que parecia óbvio, na geração dos «baby-boomers» e de Kennedy, e agora se oxidou, ficou a parecer um pouco esquisito. O Dr.Lynd e a mulher, na década de 20, foram estudar os índios Murcie em Indiana, nos EUA. Eram sociólogos e estudavam uma tribo primitiva. Faziam etnologia viva. Aplicaram então - outros por eles - os mesmos métodos à sociedade moderna e passámos todos a parecer índios. Estava em curso a descolonização. Para que o comunismo não ocupasse a alma dos índios, os EUA passaram a considerar-se, eles próprios, índios (o que era conveniente) mas, visto bem à luz de hoje em dia, o que eles passaram, foi a tratar a sua própria sociedade como algo distante, no meio do deserto. Urinar dentro de casa ou dentro da casa-de-banho, era uma questão de ordem dos factores. Se cheira mal ou não, era uma questão de gosto. Portanto: tudo era moldável e encadeável em séries diferentes. Tratava-se tudo de composição dum filme, umas cenas atrás e outras à frente. O importante era reduzir tudo a fotogramas.
Claro que Mischa Titiev canta, no fim, o hino do costume, ou seja, assobia que todos somos humanos, que nenhuma cultura é superior à outra, enfim, o credo da ONU. Contudo, o que restou de nós todos foi um gesto de estranheza em que nada era óbvio, em que nada tinha continuidade, como se as «culturas» perdidas não fossem do conhecimento ou não tivessem contribuído para a evolução das culturas «dominantes», enquanto não fossem fotografadas pelo olho distante do antropólogo. Enfim: os desmandos todos eram possíveis, porque éramos todos tribos.
Conclusão: a pretexto de não esmagar as culturas primitivas, a Antropologia cultural dos EUA licenciou o direito a acharmos tudo estranho, anacrónico e considerar que, se as pessoas não forem assim, não constituem sociedade, logo não têm direitos.
Quando, hoje, o Gen. Michael Mullen diz que tem um plano de ataque ao Irão, para além de isso ser uma estratégia de dissuasão por medida, o que ele nos diz é que somos todos tribos e, portanto, temos o direito de atacar com o machado de guerra.
Não foi Ruth Benedict, uma indivídua de afectividade anacrónica, que nos disse que ou só podíamos ser austeros (apolíneos) ou tresloucados (dionisíacos)? Pois é: cristão que não sacrifica ao Imperador, roda na arena dos leões. Já era assim, no mundo dos velhos e dos modernos bárbaros.

1.8.10

LII - (Re)leituras: Sociologia Jurídica, de Antônio Luís Machado Neto, por André Bandeira

Este é um Manual escolar. E, como todos os manuais escolares, obedece a regras clássicas de construção. Mas esconde algo diferente no fim. Dá a sensação que este Manual dum Professor de Direito da Baía, publicado em 1987, segue um percurso clássico (positivista, francês do Séc. XIX) apenas para expressar o seu «raciovitalismo», de Ortega y Gasset e do mexicano Récasens Siches. Muito bem: temos o voto dele bem expresso numa matéria que ele define, entre o positivismo seco de Comte e o individualismo de Tarde, como uma descrição dos fenómenos sociais que produzem o Direito e, em seguida,o efeito do Direito nos fenómenos sociais.
O defeito é que esta banalidade, dita ao cabo de muitas páginas, algumas citações poliglotas, antigas e modernas, continua a ser clássica. E o mal deste manual é que se fica com a sensação que a Coruja de Minerva, não vôa ao anoitecer mas vôa na manhã do dia seguinte, sem retorno.
Um dos males dos juristas é que pouco experimentam, pouco vivem e, depois da sua dogmática, limitam-se a expressar uma simpatia ideológica de escola (neste caso, o vitalismo latino de Ortega), bem escondidos. Os juristas perpetuam assim a sua timidez e, involuntariamente, exageram as suas paixões sensíveis.
No fundo, é impossível fugir ao contínuo das sociedades modernas, em que o «espírito» de Espécie, acelera a História para uma Evolução contínua, onde a batlaha é mental e a Guerra não se sabe ainda bem qual é, mas nela convergem várias guerras antigas e resilientes.
Os países latino-americanos não tiveram Reinos (ou os que tiveram foram destruídos, muitos deles com a respectivas Histórias) mas restou-lhes algo de Império. Machado Neto representa esse espírito de Império, que nada tem do bolivarismo inicial, o qual levou ao desenho actual da América Latina.Duvido que este «Império», mesmo tendo evoluído para República, seja uma solução para um continente que está agora a despertar. Isto, porque a solução norte-americana não se adapta aos trópicos, mesmo sob a forma de Império. Talvez a América Latina esteja mais perto do Pacífico e da Oceânia, como a América do Norte está mais perto da Europa ocidental.

30.7.10

LI -- (Re)Leituras: Brasília Kubitscheck de Oliveira, por Ronaldo Costa Couto, de André Bandeira

Um livro, cheio de sinais. Não, o livro não tem nada de esotérico mas traduz um certo fascínio juvenil do Historidor Costa Couto, que foi de Tancredo e de Sarney, por uma cidade que ele acha, talvez acertadamente, ser um plano esotérico. Sonhada por S.João Bosco, pela Inconfidência Mineira, habitada pelo fantasma de Getúlio Vargas e jogada pelos magos Juscelino e Niemeyer, Brasília terá uma série de afinidades com a Tel el-Amarna do Faraó egípcio Akenathon, provável pai de uma Nação deambulado sem Terra pela Ásia. Juscelino foi o Presidente da Bossa-Nova, na sua sublimidade e no seu azedume. Com Niemeyer se entende que o Comunismo não foi só Tirania, mas também houve um Comunismo tropical que era uma forma de arte e não uma estratégia de golpe de Estado. O mesmo se poderá dizer da social-democracia de Juscelino Kubitscheck, o qual poderia ter dado uma dança às aspirações comunistas sem se lhe entregar nos braços. E pode ter dançado depois com o Capitalismo norte-americano, na dança seguinte, antes de outra e outra dança, até cair, porque a morte também é boémia. No fundo, talvez Juscelino Kubitscheck não tenha sido assassinado pelo Plano Condor da CIA, mas que fazia parte da lista de abate da mesma, lá isso fazia. E, se não foi morto por ela, foi moído até à lepra, como a Inveja que acaba a arrastar pelo chão um dançarino brilhante. Talvez, no fundo, comunismo e capitalismo sejam apenas dois pares de dança para os dançarinos tropicais, dançando a uma música que só eles ouvem, que só eles regatam à noite, escutando-a até ao fim, o qual é uma ilusão de óptica. Se essa dança vinha do sangue cigano de Juscelino ou do de Niemeyer, só o fim de festa da Bossa Nova, geralmente amargo, o poderá dizer. Brasília foi um grande erro, como os militares se limitaram a constatar, mas o erro, como outros, ficou, tal qual o aluímento da parede de um rio.
Onde está o rio, afinal? O erro é o de se julgar que a Beleza não pertence às pessoas, mas à própria Beleza. Por isso, na Cidade Administrativa Tancredo Neves, provavelmente a última grande obra de Niemeyer, as salas para lanche, entre os espaços abertos de trabalho, não têm luz natural. Ora Niemeyer parece não saber que um esguicho de água, que é curvo e um raio de sol, que é recto, se encontram num mesmo plano, sem se cruzarem.

24.7.10

L - (Re)Leituras - l'Incandéscent, de Michel Serres, por André Bandeira

Eis um livro bem francês, deste Professor de Stanford, especialista na História das Ciências, e com grande estrutura matemática. É um livro chato, apesar das técnicas modernas, de Televisão, que emprega,mas sempre sugere algo interessante para as Universidades. Com um são universalismo francês, um pouco histérico, celta mas generoso, Serres propõe, ao fim, um ano básico em todas as Universidades do Mundo, em que se começaria por uma História unificada das ciêncis «duras» e se acabaria com princípios de Linguística e o mosaico de culturas.É muito interessante, vindo de um bom Professor como Serres. Mas o seu livro, um pouco autobiográfico e já no Inverno da Vida, não traz muito de novo, em doutrina, que valha a pena repetir. O mesmo princípio de Prigogine, contra Einstein, ou seja, o da entropia e da direccionalidade do Universo; umas frases francesas muito bem apanhadas como a de que a Ecologia é uma nova domesticação; uma dúvida constante, como a se o Big-Bang existiu ou não (mas sempre pressupondo-o como quem diz «Bom, eu não sou crente, mas...»); a Biotecnologia como o perfazer do Neolítico; e uma graça que nem ele notou e faz pensar: dadas várias fotos a uma macaca, Sara, para ela separar (animais, plantas, pessoas que ela conhece, e ela própria), a macaca separa, dum lado, macacos, animais e plantas e, no outro lado, as fotos dos cientistas e ela própria. Serres -- que à boa maneira gálica, faz ataques de todos os lados à Verdade -- talvez toque a Verdade, de vez em quando, no meio do texto. A macaca não revelou nada de abstracto para os cientistas anotarem. Ela amou quem lhe perguntava, no «critério» que usou. Pois é: ciências, julgamentos, modas, ideias. De cada vez que somos confrontados nesta breve existência, nós e os macacos, não queremos é que nos batam. Realmente, o calor do afecto é que é bom. De resto, são tudo modas: Serres vem do campo, é gascão e occitano(zona de Bordéus) e é um bocado parôlo, como a França desde que estabeleceu a sequência maluca da Revolução francesa e do Império. Ao falar dos pais e, depois, do Big-Bang, Serres exprime sem o saber que fomos todos sujeitos pela Cultura e pela Ganância, a uma amputação das nossas raízes, a qual nos fez, até, assassinarmo-nos entre irmãos. Realmente, os piores ódios são aqueles dentro de uma família, até porque passam de geração em geração, sem Guerra aberta.
Enfim: nem tudo o que se publica é diferente das modas e das Artes. Asseguro-vos que é mais fácil entender os mistérios da Ciência de Stanford, estudando as modas da Belle Époque na Europa, do que procurar um curso de Física quântica. E Serres sabe-o. Em prol da Paz, que ele não teve no país, nem na Família (como muitos de nós), ele propõe como parte final desse «Primeiro ano Universitário» universal, a contemplação das Obras de Arte catalogadas pela Unesco.

19.7.10

XLVIII - (Re)leituras -- Cristiano Ronaldo pai, por André Bandeira

Cristiano Ronaldo anunciou sucintamente que foi pai. Já tinha avisado. Anunciou, pediu poucas perguntas e guardou a identidade da mãe. Conhecemo-lo pelas muitas namoradas que teve. Não foi o brilhante jogador que esperávamos no Mundial. Mas foi pai, pai solteiro, sem discutir, sem fugir às responsabilidades, sem dizer que não tinha idade, que não tinha uma situação familiar, tenho a certeza que não pediu à mãe do bébé para abortar. Foi pai e acolheu o menino que lhe nasceu, como uma bênção do Céu. É certo que tem uma família à sua volta, a qual poderá cuidar do menino com amor e não lhe falta dinheiro para atender às necessidades dele, durante os primeiros anos de vida.
Cristiano Ronaldo não diz os disparates dos campeões que se sentam ao nosso lado e que se cruzam connosco todos os dias, como no poema de Fernando Pessoa. Diz que se arrepende de coisas que fez. E diz que herdou da sua mãe a tenacidade e de seu pai -- curiosamente -- a bondade e o amor pelas pessoas. O seu pai, humilde pessoa da Madeira, morreu com câncer e Cristiano Ronaldo tentou tudo para o salvar, embora o dinheiro que tinha não chegasse. Quis ser pai como o seu pai foi pai dele.
Tenho a suspeita que, embora Cristiano Ronaldo goze de uma situação que muitos pais não têm, antes de pensarem no aborto, não duvidou uma vez que fosse assumir aquele nascimento e, com isso, fiquei com a suspeita que Cristiano Ronaldo, na sua simplicidade e na sua nobreza, foi campeão mundial e fez Portugal campeão mundial.

15.7.10

XLVII - (Re)leituras -- Descolonização Portuguesa - o malogro de dois planos, de Carlos Dugos, por André Bandeira

De novo retorno aqui a este meu caminho, levantando um pé, de cada vez, cheio de livros e de inscrições. É um caminhar pesado mas o caminho faz-se caminhando, não é? Olá a todos, aos que lêem, aos que comentam e aos que olham...
Este livro de 1975, seria um livro chamado de reaccionário. E, contudo, como ele, sinto-me como se tivesse levado um bofetão de um espírito, num corredor escuro da minha casa. É um livro de um português de Moçambique que nos diz, de uma forma muita clara e concisa tudo o que aconteceu. Havia dois planos para as Colónias portuguesas: o plano de Spínola, chamado de auto-determinação e o plano de independência, do Partido de Álvaro Cunhal. Spínola perdeu e perdeu-se. Mas o 25 de Abril tinha sido todo feito para resolver as questões das Colónias, em particular Angola. Angola e o Zaire são metade de África e metade de África é um domínio enorme do Mundo. O plano de Cunhal venceu e ele perdeu-se e perdeu-se a URSS. Ficaram guerras civis, de que nunca conheceremos os mortos, tiranias e explorações de fazer corar os antigos. E ficou uma esperança de liberdade e dignidade em que, afinal, só os fortes é que ganham. Ai dos vencidos!O autor diz uma coisa muito simples. Escrevera-o em 1972, mas foi censurado: depois da libertação das Colónias, quem libertará Portugal? Sim. Portugal sobrevivera graças à sua quase miraculosa expansão marítima. Já Norton de Matos pensara numa Federação portuguesa em que o Brasil teria uma parte importante. E D. João VI. Já o próprio Marcelo Caetano pensara numa auto-determinação das colónias em que, a independência inevitavelmente se seguiria e só ficariam os laços morais e culturais. Hoje, por mais que forcemos, num só dia mau, todos esses laços podem ser cortados e, quando resta um só, alguém vem para a rua exigir que se o corte também.
Meu Deus, que desperdício, que crime até! Será que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é assim tão importante?! Será que é preciso encontrar na Lei um lugar para tudo, só para que a Lei regule os mais ínfimos pormenores da nossa vida?!
E tudo o que este livro diz é verdade, brutalmente verdade, mas agora é tarde demais. E eu próprio me sinto horrorosamente culpado...
Meu Deus, Portugal bateu-se por um mundo demasiado tímido para sobreviver e, afinal, o mundo arrogante dos Russos desfez-se pouco depois e o mundo arrogante dos norte-americanos, arqueja mortalmente ferido. É isto tudo um delta de histórias triste que acabam todas tragicamente?!
Que poderemos fazer para ainda dar sentido à nossa existência como algo que não apareceu por acaso, algo que inclui responsabilidade pelos outros? Algo que ainda passará como os que se foram antes de nós mas de que nos lembramos, até com carinho.

20.6.10

Lusofonia- Lusophony

I suppose I should to react to Clyde McMorrow's remark of 14 June, "I think the only Portuguese left in Brazil are the bakers."

Not quite. Actually, the remark shows an ignorance about what is going on in Portuguese and Brazilian Foreign Policy, the so-called Lusophone policy.

Portuguese direct investment in South America grew strongly in the latter half of the 1990s, with annual flows rising from almost 0 to an average of US$ 1.8 billion in 1996-2000, peaking at 4 billion euros in 1998. Brazil received over 95% of these flows.

The largest investments were in telecommunications (Portugal Telecom, PT), electricity, water and sewage (EDP); Águas de Portugal (AdP), cement (CIMPOR) and banking (CGD), both State-owned companies or wholly privatized. See the following:
http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/4/28394/lcg2336i_Chapter_IV.pdf

This month--June 2010--Portugal Telecom (PTC.LS) rejected a 5.7 billion euros ($7.2 billion) bid from Spanish Telefonica (TEF.MC) to buy out its stake in Vivo (VIVO4.SA), Brazil's top wireless carrier, at a 140% premium. At the end of the day perhaps Portugal Telecom will finally sell VIVO for a larger bid ($9 billion) with a clause that its digital contents will be produced by Portuguese companies.

Perhaps the Portuguese are now known in Brazil as “The one who owns my phone company.” But OK. Call them bakers. I would not mind getting one of their pancakes...

There is an even more important link between Portugal and Brazil, as Hernán Grimberg rightly pointed out. It can be summarized in the formula, "Brazil nowadays has a Johannine policy." "Johannine" derives from king John VI, who ruled the United Kingdom of Portugal, Brazil and Algarve, from Rio de Janeiro where he created the Brazilian state in 1808 in the wake of the Napoleonic Wars. (I am finishing my book on this topic.) The people created the Brazilian nation after 1822.
The Brazilian leaders understood that South America can develop when there is an understanding between Brazil and Argentina, the heirs of the Portuguese and Spanish rulers, as Hernán points out. This policy is independent of political parties. (Just follow the statements of Samuel Guimarães, of the Brazilian Foreign Ministry.)
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16199

Other South American countries are locally interesting but they are less important from a geopolitical point of view. They are parts of the Spanish “broken mirror,” and maverick states like Venezuela can be moderated if Brazil and Argentina so agree. Fernando Henrique understood this and created Mercosur. Then came the Union of South America, with Lula da Silva in 2005. The term “Latin America,” formulated by Chevalier, a counselor of Napoleon III to justify French intervention in Mexico, is banned from the Brazilian discourse. Ibero-America is currently used in Brazil, Portugal and Spain in the annual summits.

Brazil is interested in having good relations with Portugal as a gateway to the European Union. President Lula just said it when he stopped at Lisbon, on May 19, after coming from Iran and Turkey. Brazil has not really explored it. Why? Perhaps because "é o maior país do mundo" and like the 20th-century US its domestic market seems self-sufficient for economic development.